“E acho que está muito além da nossa compreensão entender como aquele meteoro nos transformou na nova geração dos X-Men, só que no interior de Minas Gerais.” A frase que instiga a curiosidade dos fãs de livros de fantasia e que abre a coluna de hoje foi dita por um dos personagens de “Emma, Cobra e a garota de outra dimensão” (288 páginas), obra que Maria Freitas, sucesso na Amazon com mais de três milhões de páginas lidas e mais de 200 mil downloads, acaba de publicar pela Galera, selo do grupo editorial Record. Contando com protagonismo não binário, o livro se soma aos outros títulos já lançados pela autora. Todos com temática LGBTQIAP+.
“Quando comecei a escrever, não pensava muito sobre essas questões. Para mim, trazer representatividade LGBTQIAP+ nos meus livros foi muito natural. Só depois, quando já tinha pessoas lendo meus livros, é que fui entender a importância do que eu estava fazendo, a falta que histórias LGBTQIAP+ faziam na vida das pessoas. Eu recebia muitas mensagens de leitores dizendo que se viram num personagem pela primeira vez através dos meus livros. Acho que isso acabou sendo determinante para a decisão que tomei de só escrever livros com protagonistas LGBTQIAP+. O que era natural passou a ser uma decisão consciente e política quando comecei a publicar os contos da coleção ‘Clichês em rosa, roxo e azul’, que foi onde nasceu ‘Emma e Cobra’”, conta a escritora.
Emo, bi, ace e não binária, Maria é do interior de Minas Gerais. Atualmente, mora na pequena São João do Manteninha, cidade de pouco mais de cinco mil habitantes, localizada no Vale do Rio Doce. Adianto que, nesta entrevista, além de refletir sobre a importância da literatura que produz e de falar sobre o novo livro, ela traz uma dica para quem tem procurado autores LGBTQIAP+. Maria Freitas também é autora de “Cartas para Luísa”, vencedor, em 2020, do prêmio Mix Literário, criado para dar visibilidade a narrativas que reflitam as questões e vivências específicas da comunidade LGBTQIAP+.
Marisa Loures: Gosta do rótulo “escritora de livros LGBTQIAP+”? Ou prefere que sua literatura seja vista apenas como literatura?
Maria Freitas: Vou te dar uma resposta bem não binária: e por que não os dois? Minha literatura é apenas literatura, ainda que seja orgulhosamente LGBTQIAP+. Ela também fala sobre amor, solidão, crescimento, heroísmo, paixão, amizade, família, dor, alegria. Ela também fala sobre gente (e alguns alienígenas) como qualquer outra literatura.
Pode-se dizer que, em “Emma, Cobra e a garota de outra dimensão”, você criou uma nova geração dos X-Men. Mas, nesse caso, as aventuras são vividas no ano de 2020, numa cidadezinha de 5 mil habitantes no interior de Minas Gerais. Como surgiu essa história?
Eu era uma adolescente emo que passava a tarde inteira criando histórias na cabeça enquanto ouvia Paramore. Os meus super-heróis nasceram aí, junto com outras histórias. Eu sempre quis escrever sobre pessoas com superpoderes, desde que comecei a escrever, porque essas eram as referências que eu tinha. Cresci vendo “X-Men Evolution”, “Super-choque”, “As meninas superpoderosas” e outros desenhos. Depois me tornei uma jovem nerd que come séries de ficção científica no jantar. Era natural criar uma história com jovens superpoderosos. Por que no interior de Minas? Porque todas as minhas histórias se passam no interior de Minas. É algo que já está na minha identidade como escritora, sabe? Sempre senti falta de ver ruas como a minha, escolas como a minha e cidades como a minha nas histórias. Fui lá e escrevi.
Trix é uma jovem que veio de uma dimensão na qual um presidente e uma pandemia ameaçam o país. E Emma e Cobra precisam se unir para ajudá-la. É possível dizer que, na literatura, você criou uma possibilidade de resolver os problemas que tanto te angustiavam na vida real?
É bem possível que inconscientemente sim. A Trix é uma personagem muito solitária, que não consegue encontrar seu lugar naquele mundo (uma metáfora para jovens LGBTQIAP+ que não conseguem se encaixar). Ela fica sozinha, isolada e presa em boa parte do livro, e era exatamente assim que a gente estava se sentindo quando escrevi o livro.
E você é autora de livros que fazem sucesso na Amazon. Já são mais de 3 milhões de páginas lidas e mais de 200 mil downloads. “Emma, Cobra e a garota de outra dimensão” é o primeiro livro lançado por uma grande editora. Como surgiu essa oportunidade de publicar com o selo da Record e quais são suas expectativas com essa novidade?
Eu tenho sonhos muito vívidos e marcantes, sabe? Vira e mexe eu me pego pensando “aquilo aconteceu mesmo ou eu sonhei?”. Quando a Rafaella Machado, editora-chefe da Galera, me mandou aquela mensagem no Instagram, eu podia jurar que estava num desses sonhos supervívidos que tenho, e que ia acordar a qualquer momento. Juro! Foi muito surreal, especialmente porque eu estava passando por um momento emocionalmente muito difícil e estava bastante desacreditada que as coisas dariam certo na minha carreira de escritora. Daí, do nada, a Rafa mandou uma DM dizendo que queria publicar Emma e Cobra… Tipo, quem acreditaria? (Confesso que, parte de mim, ainda acha que podemos acordar a qualquer momento).
Nas suas redes sociais, vi praticamente uma declaração de amor para você: “’Emma, Cobra e a garota de outra dimensão’ é um marco na literatura nacional. Trata-se da primeira vez que uma pessoa não binária é publicada por uma grande editora brasileira.” Como você avalia esse reconhecimento?
Sinceramente não sei dizer com certeza que sou a primeira, porque o mais importante é que eu não seja a última. Que “Emma e Cobra” ajude a abrir o caminho para outros autores não binários e trans, especialmente na literatura jovem, que precisa muito, muito mesmo, dessas histórias. Sobre o reconhecimento, nossa, eu trabalhei muito para chegar até aqui. Quando você é e escreve sobre gente fora do padrão, o caminho parece ser bem mais longo e difícil. Espero que esse reconhecimento se expanda e abrace outros autores brasileiros fora do padrão cisnormativo, e que ajude a encurtar o caminho deles.
Por falar na questão da visibilidade, gostaria que você falasse sobre a importância de pessoas que antes eram retratadas a partir de estereótipos terem agora a possibilidade de escrever, elas mesmas, sua própria literatura, com o objetivo de romper com preconceitos enraizados pela sociedade.
Acredito que o que nós estamos buscando é naturalizar nossas histórias, é mostrar que somos humanos e sentimos como seres humanos. Nada nos diferencia, e ao mesmo tempo tudo. Queremos ser reconhecidos na nossa diferença, mas não divididos pela nossa diferença. Acho que é por isso que termos autores LGBTQIAP+ contando suas próprias histórias é tão importante.
Gostaria que encerrasse essa entrevista dando dicas de autores de livros LGBTQIAP+ no país. Por que eles devem ser lidos?
Em vez de citar autores, vou dar uma dica de editora. O Se Liga Editorial, da Thati Machado, é uma editora independente que publica muitos novos e talentosos autores LGBTQIAP+ (inclusive, foi onde publiquei “Emma e Cobra” pela primeira vez) e faz um trabalho excelente de vitrine para novas vozes. Vale muito a pena conhecer!