‘Contos urgentes’ celebra a diversidade e a criatividade literária

Sala de Leitura entrevista a escritora Fernanda Vizian, uma das autoras do livro 'Contos urgentes'

Por Marisa Loures

CAPA capadolivro Divulgacao
(Foto: Divulgação)

Ao fazer uma consulta rápida no site da Amazon, uma surpresa: “Contos urgentes” encabeça a lista dos mais vendidos na categoria Antologias, Literatura e Ficção. A ideia desse livro nasceu no dia 3 de maio de 2024. Era meio-dia de uma sexta-feira, quando várias mensagens começaram a surgir em um grupo de WhatsApp de alunos e ex-alunos de diferentes cursos de pós-graduação do Núcleo de Estratégias e Políticas Editoriais (Nespe), sediado no Rio de Janeiro. Um dos alunos da instituição, Alexandre Alderete havia proposto que eles produzissem uma antologia de contos, em tempo recorde, e que utilizassem o dinheiro arrecadado para ajudar as vítimas da tragédia no Rio Grande do Sul. 

Em menos de 48 horas, a obra estava pronta e disponível para venda. Os autores e todos os envolvidos no projeto são oriundos de várias partes do Brasil, incluindo Juiz de Fora. Daqui, participa Fernanda Vizian, proprietária da editora Paratexto, com a crônica “De volta ao presente”. Também integra a iniciativa, o juiz-forano Leandro Muller, coordenador do Nespe e um dos nomes atuantes nos bastidores da produção. “Se nossas palavras por si não são o suficiente para aquecer e alimentar as pessoas necessitadas, nós vendemos nossas histórias e, dessa forma, transformamos ficção e afeto em cobertores e comida”, disparou Alderete, em entrevista ao Publishnews.

“Naquele dia, as notícias sobre a tragédia no Sul começavam a ganhar mais força nos telejornais e começamos a ver que o que acontecia lá era algo bem maior (e pior) do que imaginávamos até então. Alexandre é de Alegrete (RS) e sentia essa calamidade mais de perto. Poucos minutos após a mensagem no grupo, dezenas de pessoas começaram a se prontificar a enviar textos, fazer revisão, fazer a capa e a diagramação. Devido à urgência do lançamento, os autores escolheram seus melhores textos entre contos, crônicas e poesias, e a mão de obra para o livro ‘acontecer’ foi do próprio grupo, uma vez que a maioria dos participantes está inserida no mercado do livro”, conta Fernanda, que, neste retorno à Coluna Sala de Leitura, fala sobre “Contos urgentes” e reflete sobre a importância de o autor estar atento ao que acontece no seu tempo. “Quando as pessoas sofrem, é natural que a linguagem reaja, e a escrita, como uma forma de expressão, desempenha um papel interessante nesse processo.”

Marisa Loures: Existia alguma regra para a produção dos textos? Ou os autores tiveram liberdade na criação?

Fernanda Vizian: Os autores tiveram liberdade criativa na escolha dos textos enviados, mas também foram orientados a considerar questões sensíveis. Embora não tenha havido regras rígidas para o envio dos textos, foi enfatizada a importância de tratar os assuntos com sensibilidade, empatia e responsabilidade. Nos poucos casos em que os textos abordavam questões particularmente sensíveis, os autores foram incentivados a incluir um disclaimer ou nota introdutória para contextualizar e oferecer suporte aos leitores.

Alderete diz que “Uma sociedade é feita de pessoas e linguagem. Se as pessoas sofrem, a linguagem grita e a escrita reage.” A escrita de vocês reagiu. É dever do escritor estar atento ao que acontece no seu tempo?

Com toda certeza. Quando as pessoas sofrem, é natural que a linguagem reaja, e a escrita, como uma forma de expressão, desempenha um papel interessante nesse processo. Na minha opinião, os escritores têm o dever moral e ético de estarem atentos aos acontecimentos e às questões que afetam suas comunidades e sociedade em geral. A escrita tem o poder de dar voz aos silenciados, de amplificar as histórias dos marginalizados e de promover a empatia e a compreensão mútua através das palavras. Mais do que meros observadores passivos, os escritores têm o potencial de ser agentes de mudança, usando a escrita para inspirar reflexão e promover a transformação positiva na sociedade. 

“Contos urgentes” é uma antologia composta por textos de vários autores, provenientes de diversas cidades do Brasil. Cada um com uma formação diferente. São pessoas que participaram ou participam de um curso on-line. O que essas vozes apresentam no livro? Sobre o que elas escreveram? E, de certa forma, a origem e a formação de cada um deles exerceu influência no resultado dos textos que eles produziram?  

O grupo é composto por quase 200 pessoas espalhadas por diferentes estados brasileiros. São alunos e ex-alunos de diferentes cursos de pós-graduação do Núcleo de Estratégias e Políticas Editoriais (Nespe), com sede no Rio de Janeiro. De Juiz de Fora, participo com a crônica “De volta ao presente”. Leandro Muller, que também é juiz-forano, é o coordenador do Nespe, e foi quem também participou dos bastidores da produção do livro. A coletânea não teve uma temática específica por conta do tempo de produção. Precisávamos produzir algo rápido o suficiente para ajudar. Dessa forma, cada autor entrou com algum texto que já estava engavetado há algum tempo. É fascinante observar como a origem e a formação de cada autor influenciaram o resultado dos textos que produziram. Alguns autores trazem consigo uma bagagem de conhecimento que reflete na variedade de estilos narrativos e técnicas literárias presentes na coletânea. Outros, por sua vez, se destacam pela riqueza de suas experiências pessoais. Em resumo, acredito que “Contos urgentes” é uma celebração da diversidade e da criatividade literária brasileira, destacando o poder transformador da escrita quando diferentes vozes se unem para fazer do mundo um lugar mais acolhedor e solidário para todos. 

E como foi esse processo de produção em tempo recorde? Como foi lidar com o tempo?

O processo de produção em tempo recorde da coletânea em formato digital foi verdadeiramente uma experiência intensa e desafiadora, mas ao mesmo tempo empolgante e gratificante. Lidar com o tempo de maneira tão ágil exigiu uma organização e coordenação meticulosas de todos os envolvidos no projeto. Desde o momento em que a ideia foi concebida até o momento em que o ebook foi disponibilizado para venda na Amazon em apenas 48 horas, cada etapa do processo foi cuidadosamente executada com eficiência por todos os envolvidos. A equipe de edição e revisão também desempenhou um papel fundamental, garantindo que os contos fossem polidos e refinados antes de serem compilados no ebook final. Além disso, o título, o design de capa e o valor de venda foram colocados em votação e todos puderam participar de forma ativa da construção do livro. Ver o ebook “Contos urgentes” disponível para venda na Amazon em tão pouco tempo foi uma conquista incrível e uma prova do poder da colaboração e da determinação.

De que forma vocês pretendem usar o dinheiro arrecadado? Como as doações serão feitas?

O dinheiro arrecadado será utilizado de forma transparente e responsável, visando apoiar as iniciativas escolhidas pelo grupo por meio de votação.  Dentre diferentes instituições e iniciativas, o grupo definiu três para a destinação dos recursos. São elas: Comunidades Indígenas Guarani, Grupo de Respostas a Animais em Desastres e Rede Banco de Alimentos do Rio Grande do Sul. Nosso objetivo é garantir que os recursos sejam direcionados de forma igualitária para as três frentes que estão em atuação no Rio Grande do Sul e, quem sabe, até mesmo para outras, onde a gente perceba a necessidade do recurso e o impacto que uma ajuda financeira pode ter.

Fernanda Vizian Divulgacao
“Mais do que meros observadores passivos, os escritores têm o potencial de ser agentes de mudança, usando a escrita para inspirar reflexão e promover a transformação positiva na sociedade”, ressalta Fernanda (Foto: Divulgação)

Fernanda, o livro foi criado por alunos e ex-alunos do Nespe. Qual sua relação com a instituição?

Sou ex-aluna do Nespe. Em 2017, em meio a uma crise profissional, decidi buscar algum curso relacionado ao mundo do livro. Sempre gostei muito de ler e escrever e queria trabalhar com livro, mas não sabia por onde começar. Foi aí que, através de uma busca no Google, eu encontrei a pós-graduação em Edição e Gestão Editorial. Foi onde me encontrei e onde obtive as ferramentas necessárias para me desenvolver profissionalmente até estruturar a Editora Paratexto, que hoje já soma cerca de cem autores publicados.

Você participa da coletânea com uma narrativa. Ela foi escrita especialmente para o livro? Gostaria que me contasse como foi seu momento de escrita. 

Eu participo com a crônica “De volta ao presente”, que abre a coletânea. Nunca publiquei um livro solo – estou finalizando um livro-reportagem sobre o sequestro da Rua das Margaridas em Juiz de Fora, com publicação prevista para ainda este ano. Entretanto, adoro me aventurar em publicar em coletâneas. É uma forma de experimentar a publicação em comunidade e também testar a escrita para um determinado público. A crônica publicada no ebook já estava na gaveta há alguns anos. Arrisco-me a dizer pelo menos uns 7 anos. Ela veio a partir de uma situação real que envolvia um idoso e a curiosidade pelas redes sociais. Assim é a crônica: nasce a partir de uma situação cotidiana que nos afeta, nos atravessa, nos inquieta, até colocarmos tudo no papel. 

Em “De volta ao presente”, você relata uma situação vivida pelo seu avô, seu Jandir. Trata-se de uma história real? 

Sim, a história é real. Jandir era meu avô do coração. Uma vez, ao visitá-lo para um café da tarde, notei-o inquieto, mas esperei o momento em que ele falaria sobre o que o estava afligindo. Foi quando ele soltou que queria saber a diferença entre WhatsApp e Instagram. A história aconteceu há cerca de 7 anos, quando as redes não eram tudo isso que vivemos hoje. Imagine para um idoso ficar ouvindo os filhos, netos, noras e genros falando sobre os aplicativos, mas não ter a ideia do que aquilo significava. Mais intrigado ainda foi quando ele assistiu, num programa de fofoca que passava durante as tardes, que a atriz Rosa Maria Murtinho disse que preferia o Instagram ao Facebook. Querendo ou não, a tecnologia chegou até ele sem que ele tivesse a necessidade de acompanhá-la. Tudo isso me deu bagagem para escrever sobre como o que acontece ao nosso redor afeta a nossa realidade e altera nosso futuro. 

Sei que você é jornalista, isto é, lida com a escrita. Mas sempre te vejo como editora. Agora, eu te vi como autora. Como é estar nesse outro lugar?

Estar no lugar de autora é uma experiência única para mim. Como jornalista e editora, estou acostumada a trabalhar com textos de outras pessoas, ajudando a moldar suas histórias e mensagens. No entanto, ao publicar meus próprios textos, encontro-me em um lugar de maior vulnerabilidade e exposição. Escrever é um ato que considero muito íntimo e pessoal, somos desafiados a compartilhar nossos pensamentos, emoções e experiências de uma maneira autêntica e sincera. É um processo de desnudamento emocional em que nos permitimos ser vistos e compreendidos através das palavras que escolhemos. Estar nesse lugar de autora me permite conectar mais profundamente comigo mesma e com os outros. No entanto, esse também é um lugar de desafio, onde sou confrontada com minhas próprias dúvidas, inseguranças e limitações. Escrever requer coragem para enfrentar esses sentimentos e persistência para continuar avançando, mesmo quando as palavras não fluem facilmente. Mas entendo – e sempre digo para os meus autores – que essa é uma jornada de descoberta e autoconhecimento, onde encontramos significado e propósito no ato de contar nossas próprias histórias.

“Contos urgentes” foi lançado, às pressas, em ebook. Existem planos mais ousados para ele? 

Sim! Existem planos mais ousados para o livro, como a produção da versão impressa e a tradução para diferentes línguas, o que facilitaria a venda – e consequentemente a ajuda – internacional. Entretanto, em ambos os casos, o tempo poderia ser um fator que comprometeria a rápida ajuda financeira para o Sul. A tradução, por exemplo, leva tempo. Algo rápido poderia comprometer a qualidade da obra. Já para a versão impressa, as gráficas de livros estão quase todas com os prazos estendidos para a entrega, sem contar a questão da distribuição. Dessa forma, resolvemos investir toda a nossa energia na divulgação do ebook, que esta semana chegou à marca do primeiro mais vendido na Amazon, na categoria “Antologias de Literatura e Ficção”. 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade pelo seu conteúdo é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir postagens que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.



Leia também