A atriz e escritora Maria Ribeiro, em crônica recente, escreveu que “a crônica faz um enorme sentido pra quem escreve. E, se tudo der certo, pra quem lê.” Isso porque ela trata da “vida miúda”, do corriqueiro, do comezinho. Do que, à primeira vista, parece não ter importância. Muitas delas, inclusive, são confessionais. Mas, “como no fundo, somos todos muito parecidos”, como também escreveu Maria, “às vezes calha de as palavras terem serventia para alguém.” E foi depois que li esse texto, publicado na Veja no dia 16 de novembro, que chegou às minhas mãos o livro “O segundo abraço — Lugar de encontro, afeto e acolhimento”, estreia de Alice Munck na literatura (W4, 144 páginas).
Lançada no dia 30 de novembro, a obra nos abraça com assuntos recorrentes. Alice reflete sobre lembranças de infância, maternidade, relações com amigos, trabalho, saúde, doença. “Eu não escrevo somente a respeito de situações vividas por mim, mas tomo as experiências que ouço das pessoas como se fossem minhas. Assim nascem crônicas pessoais que permeiam o cotidiano de muitas pessoas”, conta a autora, que é esposa, mãe e farmacêutica.
Ela cuida da casa, trabalha fora o dia todo e, ainda assim, escreve. Aliás, alguns dos escritos de Alice nasceram “entre mochilas, lancheiras, bolsas e fraldas”, como ela diz. “Nesse cronometrar de segundos, descobri que é possível sossegar o núcleo derretido da nossa interioridade. E, então, com atenção completa, ter aquele encontro que inspira o dia. A partir daí, os olhos ficam apurados, os ouvidos sensíveis e todos os sentidos despertos para o que acontece ao redor e, principalmente, dentro de nós. E, assim o tempo parece parar…”. E não é que é, justamente, esse processo criativo de Alice que faz as crônicas de “O segundo abraço” fazerem tanto sentido para mim e, certamente, para muitas outras mulheres que são mães, trabalham, escrevem e precisam lidar com o “senhor tempo”?
Nesta entrevista, a autora nos conta como ela faz para “tocar o silêncio”. Confidencia como é ser levada a lugares de quietude e aprender muito ao passar por essa experiência. Ela diz o que espera despertar nos leitores e leitoras e reflete sobre os caminhos que “o segundo abraço” começará a percorrer.
Alice, você relata que “o tempo para uma mãe de filhos pequenos que trabalha fora o dia todo escorre entre os dedos.” Ainda assim, você escreve. E escreve em meio à “faina de barulhos e de cansaços”, como diz a professora Scheila Lopes em texto para o seu livro. Como tocar o silêncio nessas circunstâncias, atingindo, assim, o que se considera uma condição ideal para a arte de criar?
Tocar o silêncio nessas circunstâncias de vida não é fácil. De maneira prática, envolve respirar fundo por algumas vezes durante o dia, resistir à tentação de sacar o celular ao menor sinal de tédio, simplificar a vida e dedicar alguns minutos para a meditação bíblica, que me possibilita aquietar minha mente e meu coração e me inspirar em palavras de onde jorram vida. O silêncio é mais uma disposição mental e do coração do que ausência de barulho externo. Claro que momentos de silêncio são importantes, mas a quietude vai além disso. É a intenção de diminuir o ritmo, se aquietar, olhar para dentro e olhar para o outro.
Por falar nisso, em “Os lugares de fala e a onipresença do silêncio”, você conta que, no momento da escrita desse texto, tinha sido colocada no lugar do silêncio, mas não de “livre e espontânea vontade”. E confessa que, às vezes, desejava esbravejar, mas agradecia pela oportunidade de poder passar por essa experiência. Esse tempo já passou? O que você aprendeu com ele?
Esse tempo não passou completamente. Recentemente passei por mudanças no trabalho e o próprio livro tem me trazido oportunidades de diálogos e fala que eu não tinha antes. O que eu aprendi com esse tempo de silêncio e tenho tentado colocar em prática é escutar, de fato, as pessoas. A escuta verdadeira pode ser mais transformadora que o melhor discurso. Mas ainda sou uma iniciante na arte da “escutatória”, como diz Rubem Alves.
Lendo o texto de apresentação do livro, entendi como é seu processo de escrita, mas gostaria de saber um pouco mais sobre o processo de gestação de “O segundo abraço.” Por favor, explique o título para os leitores da coluna Sala de Leitura e conte-nos como essa obra nasceu.
O título remete à crônica que fecha o livro, que é a perspectiva do irmão mais velho da parábola do filho pródigo, contada por Jesus. Nela, eu reconstruo a cena da volta para casa do irmão mais novo que gastou sua parte na herança, sendo seu pai ainda vivo. O pai recebe o filho caçula de braços abertos e, na crônica, cabe ao irmão mais velho o segundo abraço. Assim, trago a perspectiva de deixar que o primeiro abraço seja do pai, que representa Deus, para que as atitudes do irmão caçula não nos amargurem, nem nos levem a um protagonismo forçado ou à resignação, mas que nos levem a um lugar de espera e de esperança. Então podemos correr para o segundo abraço. E essa obra nasceu a partir de um manuscrito de livro infantil que enviei para a W4 Editora em uma chamada pública para publicações. A editora-chefe ficou intrigada pelos motivos que levavam uma farmacêutica a escrever e quis conversar. Nessa conversa, compartilhei que eu escrevia crônicas para ordenar meus pensamentos e sentimentos. Depois da leitura de três ou quatro textos, recebi o convite para fazer um projeto de livro de crônicas. Então, recuperei alguns textos já escritos e comecei a escrever intencionalmente para o livro.
Realmente, acaba existindo uma crença de que a literatura é um terreno percorrido por quem é das Letras. Você é da área de saúde e se entregou à arte da escrita. E com muita sensibilidade. O que provocou esse seu encontro com as palavras? Como isso se deu?
Sou neta e filha de ávidos leitores, que, mesmo não sendo da área de Letras, se arriscaram a escrever e a publicar livros. Tive professores maravilhosos na educação básica, alguns deles retratados no livro, que despertaram o amor pela Literatura. Tenho amigas escritoras que me pegaram pela mão e me ensinam muito. Ser casada com um professor de Língua Portuguesa e Literatura também é um incentivo imenso. Mas foi ao me encontrar em situações em que minha vida foi pausada, que a escrita emergiu como uma válvula de escape e se tornou imprescindível para mim.
Em crônica recente, a escritora e atriz Maria Ribeiro escreveu que “a crônica faz um enorme sentido pra quem escreve. E, se tudo der certo, pra quem lê.” Que caminho você percorreu para fazer reflexões, às vezes, tão pessoais, fazer fatos tão corriqueiros (matéria-prima desse gênero textual) ter “serventia para alguém”? Aliás, o que você espera despertar no seu leitor?
As minhas primeiras crônicas eram bem pessoais. O objetivo é que fizessem sentido só para mim. Depois passei a compartilhá-las com amigos próximos, numa tentativa de estabelecer um diálogo assíncrono. Compartilhando esses textos, me surpreendi com a forma que eles ressoavam nos leitores. Eles passaram a refletir como espelhos a realidade de quem lê. E isso me motivou a publicar esses textos. Muitas pessoas já me relataram que se sentem abraçadas pelos textos. Outras dizem que eles trazem luz aos cantos escuros e escondidos da alma. Eu espero despertar emoções e provocar reflexões de forma leve e cuidadosa e estabelecer o diálogo com quem me lê.
Que caminho “O segundo abraço” vai percorrer a partir de agora?
Quando eu pensava se iria seguir ou não com o projeto do livro, uma amiga escritora me disse que a gente nunca sabe aonde o livro publicado vai nos levar. Nem aonde ele vai chegar. “O segundo abraço” foi gestado e agora segue seu caminho como um filho autônomo que carrega marcas de quem o gerou, mas que não determina quais caminhos ele vai percorrer. Deixo isso a cargo dos leitores. Alguns caminhos que eu não imaginava já foram percorridos. Uma pessoa me disse que não gosta de ler e que “O segundo abraço” foi o primeiro livro lido por ela. Outro exemplo é de uma médica que escreveu uma carta para os pais de uma paciente utilizando frases do livro com o intuito de sensibilizá-los para a importância de aceitarem ajuda da equipe médica. Eu nunca poderia imaginar situações como essas.
A Alice escritora traça planos para o futuro? Gostou de escrever um livro?
Foi um longo e recente processo me reconhecer como escritora. A cada reação dos leitores, reforça em mim o desejo de continuar escrevendo. Eu gostei muito de escrever um livro, mas mais do que isso, eu amei descobrir que posso cuidar de pessoas através dos meus escritos. Eles podem gerar emoções, reflexões e diálogos que levem ao diagnóstico e ao tratamento de enfermidades que muitas vezes não eram reconhecidas como tais. “O segundo abraço” fez a Alice escritora se reconhecer capaz de preparar e administrar palavras terapêuticas de afeto, acolhimento e transformação em seus leitores. E é nesse caminho que eu quero seguir.
“O segundo abraço — Lugar de encontro, afeto e acolhimento”
Autora: Alice Munck
Editora: W4, 144 páginas.
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