“Não gosto do Brasil da Casa Grande”

Por Marisa Loures

Jose Eduardo Agualusa Divulgacao
O escritor angolano José Eduardo Agualusa retorna ao Brasil para um bate-papo com o público sobre “O vendedor de passados” e conversa com a coluna sala de leitura sobre a relação dele com o nosso país (Foto: Divulgação)

O angolano José Eduardo Agualusa, um dos principais nomes da literatura contemporânea de língua portuguesa, tem uma relação muito forte com o nosso país. Já morou em terras brasileiras (viveu em Olinda e no Rio de Janeiro), e também, aqui, montou uma editora, a Língua Geral, dedicada a autores lusófonos. E é para cá que ele vem, com exclusividade, para participar do encontro do Clube de Leitura do CCBB. O bate-papo com o público está programado para o dia 12 de julho, às 17h30, na Biblioteca do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro.

“Fui feliz em Olinda. Fui feliz no Rio de Janeiro. Gostaria de voltar a viver no Brasil. Dito isto, é sempre bom lembrar que não há um único Brasil. Há muitos países, muito diferentes, dentro do Brasil. Eu gosto em particular do Brasil africano – da música, da capoeira, da culinária, do candomblé. Não gosto do Brasil da intolerância religiosa, não gosto do Brasil de Bolsonaro, não gosto do Brasil da Casa Grande”, dispara o autor.

Na conversa com os brasileiros, ele retorna ao romance “O vendedor de passados”, cuja versão em inglês, The book of chameleons, foi ganhadora, em 2007, do Prêmio Independent na categoria Ficção Estrangeira. Lançada em 2004, há quase duas décadas, a obra apresenta uma verdadeira sátira aos dramas vividos por Angola no Pós-Guerra Civil. A burguesia acredita que seu futuro está assegurado, mas o passado não é adequado à sua nova condição social. E é nesse contexto que se destaca a figura de Félix Ventura, um angolano que ganha a vida vendendo passados falsos e honrosos a empresários, políticos, generais e representantes da burguesia.

Quem quiser participar do encontro com o escritor, no dia do evento, deve retirar o ingresso, gratuitamente, na bilheteria do CCBB (Rua Primeiro de Março 66 – Centro-Rio de Janeiro) ou pelo site bb.com.br/cultura.

Marisa Loures – Você disse que espera poder ter uma boa conversa com o público brasileiro sobre os grandes temas abordados em “O vendedor de passados”, isto é, a questão da memória e da identidade.

José Eduardo Agualusa –“O Vendedor de Passados” é um livro ao qual retorno com bastante frequência. Na linguagem dos livreiros é um “long seller”, ou seja, um livro que, não obstante ter sido publicado pela primeira vez há tantos anos, continua a ter muitos leitores. Também por isso, é frequente que me convidem para falar sobre ele. As circunstâncias que me levaram a escrevê-lo não mudaram muito, na medida em que continua a existir em Angola uma classe de pessoas muito ricas, que enriqueceu de forma mais ou menos repentina, e mais ou menos ilegal, e que, portanto, está muito interessada em comprar um passado melhor.

– Fazendo uma pesquisa para esta entrevista, descobri que o personagem Félix Ventura, de “O vendedor de passados”, nasceu de um sonho. E descobri também que havia brasileiros neste sonho. Poderia resgatar essa história para nós?

Na época eu vivia em Berlim, com uma bolsa de escrita criativa. Uma noite sonhei que estava num bar brasileiro, ali mesmo, em Berlim. Alguém me apresentou um sujeito que se apresentou como “vendedor de passados” – ele vendia passados aos novos ricos angolanos. Então, escrevi um conto baseado naquele sonho. O conto foi publicado numa revista portuguesa e recebi mensagens de vários leitores, querendo conhecer melhor aquele personagem. Percebi que o personagem pedia um espaço maior, e escrevi o romance.

– E “O vendedor de passados” nos faz perceber o quanto de nossas lembranças é inventado. Como você, o criador do Félix Ventura, lida com suas memórias?

Tenho a perfeita noção de que muitas das minhas memórias são falsas, ou, pelo menos, não são inteiramente verdadeiras. Percebo isso sempre que me encontro com os meus irmãos, ou com amigos de juventude, e eles começam a contar episódios do passado. Nunca coincidem com a memória que eu tenho dos meus. Também me acontece encontrar leitores que me falam dos meus romances e, muitas vezes, são histórias muito distintas daquelas que escrevi – ou que julguei ter escrito.

– É o público brasileiro que escolheu “O vendedor de passados” para o próximo encontro do Clube do Livro do CCBB. O que faz essa obra estar tão marcada na memória dos brasileiros?

Esse romance está publicado em mais de trinta países. Continuo recebendo mensagens de leitores que se identificam com ele. Por vezes, recebo mensagens de leitores que estão em países onde eu nem sequer sabia que o livro estava publicado. Por exemplo, descobri há pouco tempo que esse livro, e mais outros dois, está publicado no Irão. São – tanto quanto percebi – edições piratas. Agrada-me saber que sou lido no Irão, no Japão, na China ou no Bangladesh, e que esses leitores se identificam com uma narrativa que se passa num país tão distante e tão diferente. Por outro lado, o livro trata de questões que são universais, como a memória e a identidade. Se tantas das nossas memórias são falsas, o que há em nós de verdadeiro Quem somos? Podemos ter mais do que uma identidade?

– Por falar nessa sua relação com o Brasil, em entrevista concedida ao jornal Estado de Minas em setembro do ano passado, às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais, você lamentou o fato de o país ter sido “sequestrado pelo ódio”. E mostrou-se otimista com relação ao futuro, declarando que estávamos “à beira de resgatar o Brasil da alegria e da tolerância.” Depois de seis meses do novo governo, qual é sua percepção do Brasil de hoje?

Acho que ainda há um longo caminho a percorrer para resgatar esse Brasil da alegria e da tolerância. Acho que o Lula não aprendeu muito com o exemplo de Nelson Mandela, com o qual gosta de se comparar. Mandela foi capaz de negociar com o regime do apartheid. Foi capaz de ir buscar muitas daquelas pessoas, que estavam lá, no campo do apartheid, e trazê-las para o campo da democracia e do anti-racismo. Foi capaz de pacificar a sociedade sul-africana, que, naquela época, estava totalmente dividida, à beira de uma guerra civil. É verdade que, no caso da África do Sul, seriam necessários mais do que um Mandela. O país voltou a dividir-se – mas não há dúvida de que Madiba evitou um banho de sangue e o colapso total da África do Sul.

– Certa vez, você disse estar convencido “de que, para se revitalizar, para se renovar, para ganhar a força de que necessita de forma a enfrentar o futuro, o Brasil tem de redescobrir África. Tem de voltar a beber da fonte primordial.” Você acha que, hoje, o Brasil já se deu conta de que é um país de matriz africana?

O Brasil avançou imenso nos últimos anos, no que diz respeito ao reconhecimento da sua identidade africana. Mas também aí ainda há muito a fazer: o Brasil é um país constituído por uma maioria de pessoas de origem africana. É preciso que essas pessoas sejam maioria também nas estruturas do poder, em nível político, econômico e cultural. Infelizmente, ainda estamos bastante longe desse dia.

 

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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