
Começo dos anos 1980. Uma professora, leitora desde muito nova, percebeu o potencial das rodas de leitura, principalmente a leitura literária, entre alunos e alunas do Ensino Fundamental à universidade. A estratégia deu tão certo que, em 1992, surgiu a oportunidade de levar a iniciativa para o CCBB Rio de Janeiro, Centro Cultural do Banco do Brasil, na época, recém-inaugurado. Três anos se passaram. Agora o ano é 1995. Ela também já tinha atuado na Oficina Literária Afrânio Coutinho, que acabou sendo fechada. No entanto, queria continuar o trabalho. Alugou uma sala no Flamengo e chamou amigos escritores para também conduzirem cursos, oficinas e eventos literários. E eram nomes de peso do cenário nacional, como Victor Giudice, Flávio Moreira da Costa, Esdras do Nascimento, Sérgio Sant’anna, Antônio Torres, Cleonice Berardinelli, Ana Maria Machado, Ferreira Gullar e Ruy Castro. Assim nasceu a Estação das Letras, que, posteriormente, tornou-se Instituto Estação das Letras.
“À época, acreditei, como ainda acredito, estar contribuindo para uma maior profissionalização da atividade literária e leitora no país. Era estranho que as pessoas publicassem qualquer coisa, de qualquer jeito (insira aí a qualidade literária, gráfica etc). E mais ainda: grande parte ignorava (ainda ignora) que escrever livros é uma atividade artística como outra qualquer, requer estudo, prática. Não é apenas uma inspiração jogada num papel. Para isso, existe um mercado. Nele, o livro é um produto como outro qualquer. As razões eram muitas para criar a Estação e todas se revelaram necessárias. Basta ver a quantidade de oficinas que abriram depois”, afirma Suzana Vargas, celebrando, neste ano de 2025, o aniversário de três décadas do IEE.
Nesta entrevista à coluna Sala de Leitura, a também escritora e curadora do Clube de Leitura do CCBB é convidada a voltar ao começo de tudo para reviver essa história. Segundo Suzana, o Instituto Estação das Letras continua com o compromisso de ser uma instituição dedicada à formação de leitores, escritores e profissionais do livro. “Se alguém deseja se transformar num escritor, não basta apenas sair escrevendo. Há que se ter consciência do mundo da literatura.”
Marisa Loures – Três décadas depois, o que permanece daquele projeto inicial e o que mudou significativamente no Instituto Estação das Letras?
Suzana Vargas – A Estação das Letras permanece na sua proposta inicial: um espaço de oficinas de leitura, de criação literária e mercado editorial, girando em torno de eventos que estimulam a leitura servindo de ponto de encontro para os alunos. Na gênese, pouco mudou, mas, com o tempo, fui descobrindo que havia a necessidade de organizar esses saberes diversos numa Formação que aglutinasse matérias úteis aos aspirantes a escritores. Uma formação útil também a professores, mediadores e todos aqueles que lidam com o objeto livro. Muitos não sabem sequer quanto um autor recebe de direitos autorais. Acham que o livro veio voando parar nas suas mãos. Surgiu então a Formação Literária para escritores e mediadores de leitura. Mudamos nosso status em 2017 para Instituto com o objetivo de ampliar ainda mais as atividades e poder receber ajudas financeiras (doações, espaços físicos mais significativos, apoios), mas isso revelou-se, até o momento, muito complexo. A pandemia nos apanhou desprevenidos, num momento em que só tínhamos cursos presenciais, de modo que tivemos de nos reinventar no universo on-line. Foi duríssimo. Mas estamos trabalhando e ainda descobrindo caminhos de sustentabilidade nessa área.
– O Instituto Estação das Letras tem se adaptado às transformações digitais sem perder o foco na formação literária crítica e humanizadora. Como você enxerga o desafio de manter o compromisso com a profundidade do texto literário em uma cultura cada vez mais veloz e fragmentada?
– Como disse, foi um trabalho duríssimo, e continua sendo, manter tudo funcionando com a mesma qualidade. Mas entramos na era digital e assumimos esse lugar que pode, sim, ser muito interessante e eficiente desde que utilizado com consciência, criatividade e sensibilidade. Uma das coisas mais importantes para nós: nossos cursos continuam a funcionar como se estivéssemos numa salinha para 10/15 alunos, não mais. Principalmente se for uma oficina de criação literária, onde a atenção do professor precisa ser mais individualizada. Só trabalhamos com profissionais que participam dessa filosofia. Quantidade interfere na qualidade, sim. Com relação à velocidade de nosso tempo, quem trabalha com literatura deve saber e aprender que no terreno artístico e – por tabela – em todos os lugares da vida, tudo se constrói através de processos. Nada vem parar nas nossas mãos de uma hora para outra, embora, às vezes, pareça. Mesmo o luxuoso auxílio da IA só é possível por conta dos diversos dados armazenados pacientemente ao longo do tempo. Quem lê e cria sabe de tudo isso ou aprende, lendo e criando. Claro que com esses dados armazenados num software tudo fica mais fácil. Importante é ter consciência dos processos. Não escrevemos um bom livro apertando um botão, assim como não fazemos amigos verdadeiros apenas apertando uma tecla.
– E que impacto o projeto de formação literária, que tem sido um diferencial do IEL, tem gerado até agora?
– Sim, é o diferencial, resultado desses anos todos de experiência ao longo dos quais recebemos alunos com formação escolar e acadêmica diversa. Percebi que necessitava dar uma direção às oficinas, introduzir, por exemplo, um engenheiro ou um médico no universo da literatura. Muitos são leitores maravilhosos, escrevem bem, alguns têm até livros editados, mas lhes faltam informações essenciais de natureza variada para desempenharem seu ofício de modo mais profissional. Se alguém deseja se transformar num escritor, não basta apenas sair escrevendo. Há que se ter consciência do mundo da literatura. Ter cultura literária é necessário, ler não somente seus pares, mas os clássicos, entender o gênero que você deseja desenvolver, saber sobre o livro enquanto objeto de consumo. O que você ganha ou perde com isso? Muitas vezes, para autores que se autopublicam, parar de pagar por publicações que, muitas vezes, não o levam a lugar algum. Foram muitas as motivações para criar nossa Formação Literária para escritores. São 160 horas distribuídas em várias matérias informativas, teóricas e práticas e têm tido um acolhimento razoável. Encontramos sempre alguns percalços, principalmente porque muitos pensam não precisar de tudo aquilo. Fizemos uma pausa em 2025, mas vamos retomar no segundo semestre. Acredito nesse trabalho como o melhor que se pode oferecer num tempo em que a internet virou um cipoal de cursos e oficinas nessa área. Digo isso sem querer ofender. Dá até uma alegria ver proliferar minhas ideias (que não foram só minhas). Sinal de que eu tinha alguma razão e uma bela intuição quando resolvi criar a Estação das Letras.
– E que perfil de profissional a formação literária pode transformar ou fortalecer?
– Eis aí uma pergunta fundamental. Uma boa formação literária é útil e bem-vinda em qualquer setor. Objetivamente, teremos, com certeza, bons e excelentes escritores, professores não somente de literatura, mas mediadores, redatores, jornalistas, editores, tradutores, revisores e um sem fim de especialidades. Médicos, advogados, toda e qualquer profissão só se beneficiará com profissionais que conhecem as inúmeras possibilidades da linguagem porque desenvolveram sua sensibilidade estética e ética. No que diz respeito à escrita, abre-se um universo imenso.
– Você acredita que a formação de leitores pode contribuir diretamente para a cidadania e para a transformação social? Gostaria que contasse um caso marcante nesse sentido, vivido nos projetos sociais do IEL.
– Mais do que nunca, formar leitores se tornou fundamental no nosso país tão desigual e tão desinformado. Vem aqui aquela máxima lobatiana (Lobato, sempre tão criticado): um país se faz com homens e livros. Parece retórica, mas não é. A família e a escola têm de ser as primeiras a saberem disso e a colocarem livros nas mãos das crianças, sejam eles quais forem: gibis, jornais, virtuais ou não. E cancelar as aulas de Língua Portuguesa, substituindo-as por aulas de leitura. Levar a leitura como matéria artística, lúdica. Sem provas. A gramática é coisa que a criança aprende numa tarde, quando já estiver madura para entender as leis da linguagem. Quanto a histórias maravilhosas, tenho muitas, mas vou falar de duas. Normalmente, oferecemos bolsas de 100% a determinados alunos. Um deles frequentou nossos cursos todos por alguns anos e hoje é autor de renome nacional e internacional. Estou falando do querido Octávio Jr, o livreiro do Alemão. Nosso orgulho e admiração total. A segunda história tem a ver com um dos projetos realizados pelo Instituto na pandemia, quando promovemos os projetos Rodas de Leitura no Morro do Alemão, de forma virtual. Nos reuníamos com crianças, adolescentes e adultos (em horários distintos). Realizávamos três encontros de leitura com um título (que eles recebiam em casa) e no quarto dia levávamos o autor. Tudo virtualmente. Era uma emoção ver 30 crianças nas suas casas, com os livros, lendo. Muitas estavam acompanhadas pela mãe ou o pai ou, mesmo, de outras crianças. Entre os autores, Conceição Evaristo, Daniel Munduruku, Tino Freitas, o próprio Octavio Jr e tantos. Complementávamos nossa ação com uma cesta básica para cada família de alunos (cestas doadas por nossa comunidade leitora).
-Em um momento em que ainda estamos vivendo o impacto de cortes recentes em políticas públicas de cultura e educação, que avaliação você faz do papel de instituições como o Instituto Estação das Letras?
– Com 30 anos de existência enquanto espaço alternativo, nunca tivemos apoio de espécie alguma. Praticamos a economia criativa bem antes de o termo se tornar popular. Claro que pagamos um preço alto por isso, os desgastes são muitos, principalmente para uma professora que faz doublé da empresária que nunca consegui ser. Mas avalio que nosso papel está justamente em preencher essas lacunas deixadas pelo poder público. No caso do IEL, e desde sempre cobramos de quem pode pagar, mas oferecemos bolsas de 50, 30 e até 100% dependendo do caso. As bolsas alcançam professores e estudantes. Temos uma experiência bem grande com várias formas de trabalho porque somos também uma produtora que realiza curadorias para feiras e bienais. Desenvolvemos, com isso, uma forma de trabalhar que se adapta às condições que nos são oferecidas. Trabalho com muito, pouco e até sem nenhum dinheiro. É o caso da Estação. Comecei levando móveis da minha casa e contei com amigos da maior relevância. O importante é a seriedade, o empenho e a criatividade com as quais você se lança nesse mundo e nesse país sempre em crise.
– Suzana, você também tem uma carreira consolidada como poeta e como autora de obras sobre leitura. De que maneira a experiência de escritora alimenta seu trabalho como curadora e formadora?
– A experiência de escritora talvez tenha me ajudado a ser uma boa professora (isso eu garanto!). Sou leitora desde muito nova, cedo comecei a escrever e publiquei o primeiro livro cedo também. O fato de ter dentro de mim essa chama da criação me ajudou a criar estratégias interessantes para a leitura, principalmente para a leitura literária. Uma dessas estratégias (que fazia sucesso entre alunos do fundamental à universidade) eram as rodas de leitura, atividade que pratico em sala de aula desde os começos dos anos 80, quando comecei a dar aulas. Pois bem: em 1992, apresentou-se a oportunidade de realizar o projeto Rodas de Leitura no recém-inaugurado CCBB do Rio de Janeiro. Foi um sucesso estrondoso. Tanto que continuei esse trabalho por 13 anos no Rio, cinco em Brasília e dois em São Paulo. Talvez esse olhar da escritora tenha conseguido iluminar o da professora. O projeto (pioneiro nessa modalidade tão simples) foi replicado por todo o país. Hoje se faz Rodas de Leitura como quem faz Rodas de Samba. Muito bom isso. E o trabalho de curadora de muitos projetos e bienais também se faz dessa forma. Quando penso em qualquer projeto, a minha experiência pessoal é a que conta. Parto desse rio da minha aldeia que é o meu “eu profundo” – para citar Fernando Pessoa – para conceber um modo de trabalho que desperte nos outros a alegria de ler. Afora isso, tentei transmitir essa experiência para outros professores publicando minha tese de mestrado em Teoria Literária, onde conto minhas experiências leitoras de sala de aula, cujo título é “Leitura; uma aprendizagem de prazer”. Esse livro teve muitas edições na José Olympio e agora está de cara nova na Altabooks.
– Você ainda é curadora do Clube de Leitura do CCBB, onde sempre esteve atenta à diversidade de vozes. Como a curadoria desses eventos dialoga com o seu ideal de literatura plural e decolonial?
– Chegamos agora na atualidade: o Clube de Leitura CCBB, que em agosto completa quatro anos e cuja história começa na pandemia, quando os bibliotecários de lá me procuraram para fazer um Clube de Leitura dentro da Biblioteca. Aceitei na mesma hora e levei para lá os mesmos ideais que me moveram a criar a Estação das Letras, as Rodas e tudo o mais: despertar o prazer de ler, conquistar leitores levando a eles o que de melhor, de mais lúdico e informativo eu tenho notícias ou conheço. E aí entram a diversidade, a informação, o lúdico, tudo com cara de conversa informal, sem tantas teorias. Eu levo os autores e o público escolhe os títulos. Nos reunimos e os encontros vão para o Youtube. Aqui, um exemplo: o diálogo entre o que desejo para mim e para todos que se deparam com um bom livro na mão. Nesse diálogo, está o desejo de liberdade, de ter um olhar mais livre para esse mundo cada vez mais cheio de rótulos. Desde o início, nas Rodas de Leitura que começaram nos anos 90, já discutíamos literatura negra, literatura gay, literatura regional (termo discutível) etc. Continuamos a discutir agora, quando os assuntos viraram necessidade. Pelo Clube, que já leva a fama de internacional, passaram escritores diversos: de Mia Couto a Rita von Hunty, de Leonardo Padura a Miltom Hatoum.
– A literatura que emerge das margens — de vozes periféricas, indígenas, negras, femininas — vem conquistando novos espaços no circuito editorial. Como curadora, escritora e mediadora, que critérios éticos e estéticos orientam suas escolhas quando o tema é diversidade literária?
– Desde sempre, a literatura me ensinou a viver. Muito cedo, com nove anos, decorava poemas porque gostava dos sons e daquilo que eles me ensinavam. Então um livro, seja de quem for, vai me atingir como leitora por esses caminhos. Não existe um critério fixo, faço questão de entrar num livro sem preconceitos ou fórmulas rígidas. Minha ética é meu desejo de ler um bom livro com o qual eu aprenda a entrar em novos universos.