Já conhecia a Luisa Micheletti apresentadora de TV e atriz, e seu jeito despojado de conversar com o público. Contudo, foi na segunda-feira, véspera em que ia ao ar sua última participação como a bailarina francesa Noémie na novela “Novo Mundo”, da Rede Globo, que pude conhecer a Luisa Cretella Micheletti. O nome do meio, ela diz, foi propositalmente incluído no seu “eu” escritora para o livro de estreia “Nem sofá, nem culpa” (Touro Bengala, 107 páginas).
“Acho que tem um pouco mais de mim nesse livro do que se pôde ver na TV até hoje. Tem a Luisa Micheletti, mas tem uma coisa no meio aí que, talvez, ninguém nunca tenha visto. Um lado esquisito que vem desse lugar, dessa liberdade da ficção, de poder explorar lugares mais cinzentos, talvez mais melancólicos, mais estranhos”, revela a autora dos sete contos, além de um posfácio, que integram a obra.
Os textos, que se iniciam com as memórias de infância de Luisa na “Vila Ida” e passam pelo relato de um gato siamês que teria sido neto de um dos maiores assaltantes da história, partiram de experiências reais da autora como atriz, mulher e apresentadora de TV. Nasceram como crônicas gestadas ao longo de sete anos. Depois, voaram para o terreno da ficção, por sugestão do editor. Aliás, são da editora as palavras que deixam no leitor a curiosidade de conhecer o estilo dessa nova ficcionista que surge. “Vemos a estreia de Luisa com surpresa, tanto pela rica paleta figurativa, alusiva, simbólica e arquetípica, quanto pela sobriedade do compromisso narrativo com os assombros epifânicos que se espera das formas breves.”
Marisa Loures – Seu editor propôs que você participasse de uma oficina literária e que criasse ficção a partir de textos reais. Você acreditava que pudesse adquirir um estilo a partir de uma experiência como essa?
Luisa Micheletti – Sem dúvidas. Quando você se propõe a apreender uma arte, você tem que se submeter a técnicas. Se vai pintar uma aquarela, há técnica para isso, se quer fazer uma pintura impressionista, tem técnica para isso. Se quer ser ator de cinema, existem “N” técnicas para serem seguidas. Se quer tocar um instrumento, é preciso saber as escalas. O estilo nada mais é do que aprender minimamente as questões técnicas da arte que você se propõe a fazer e colocar sua individualidade para além dos conceitos. É o trabalho de uma vida. Não acho que tenho agora um grande estilo literário, mas comecei a trilhar um caminho, humildemente, lançando meu primeiro livro. É uma ousadia impressa, estou me arriscando nesse lugar.
– A Touro Bengala diz que vê sua estreia como uma surpresa e que seu texto é marcado por alto poder inventivo e inusual pendor literário. Quais são suas referências? Elas aparecem nos contos?
– O fim da minha adolescência e meus 20 anos foram marcados pela literatura de John Fante, Kurt Vonnegut, Bucovisc, Clarice Lispector, um pouco de Hilda Hilst, que é uma coisa mais recente na minha vida. O John Fante foi uma cara muito importante para me levar para escrever. Acho que minha paixão pela literatura começou com ele. Depois, Milan Kundera. É difícil dizer, e o leitor vai dizer melhor do que ninguém. Quem sou eu para me comparar com esses grandes escritores. Não dá para me categorizar no meu primeiro livro, mas claro que tudo que a gente bebe ao longo da vida como referência acaba aparecendo de alguma maneira. Às vezes, relendo, falo “nossa essa frase aqui me lembra o ‘Matadouro 5′”, porque apresenta um comentário que parece vir de uma visão externa do que está acontecendo e, de repente, vem um comentário prosaico sobre uma questão que parece ser super séria. Digo, “nossa parece ser o Kurt Vonnegut”. Não é, é claro. Mas às vezes me dá essa impressão.
– Há algum elemento que alinhava os sete contos ou eles são totalmente independentes?
– O que os deixa mais ou menos alinhados são as experiências verídicas. Tem três contos que trazem experiências reais. Em um deles, sou eu, atriz L, dialogando com uma personagem Shakespeariana, que é a Lavinia. Surgiu de uma experiência que tive ao ler a peça “Tito Andrônico”, do Shakespeare, como Lavínia. Fiquei tão apaixonada pela personagem e pela obra que resolvi dialogar com ela. É um diálogo através de telepatia. Tem um relato de uma experiência que tive fora do Brasil, quando fui comprar os direitos de uma peça para tentar produzir aqui. Então, a primeira metade do conto é toda verdadeira; depois ele se espelha numa ficção um pouco fantástica. Tem outra viagem, que é uma relação amorosa começando. Tem memórias da infância no primeiro conto, que é o “Vila Ida”. São fragmentos de memórias desse bairro onde cresci. E o último conto, “Gatuno”, é o mais inventivo. O narrador é um gato siamês que narra sobre a trajetória de uma família de ladrões, de onde ele vem. Ele é neto do Ronald Biggs, um dos maiores assaltantes da história. Isso, para ele, é uma coisa muito digna de ser contada num relato.
– Trabalhando como apresentadora de TV, você lida com a vida real. Foi difícil escrever ficção?
– Quando fui escolher minha profissão, sofri uma pressão familiar para ir para o jornalismo, e eu não quis. Queria ter feito cinema, mas, na época em que escolhi, não tinha cinema no Brasil. Não tinha nem “Cidade de Deus” ainda, estava muito devagar. Então acabei indo para o meio termo, que era rádio e TV, e eu justifiquei isso dizendo que não queria lidar com a realidade. Quero lidar com a ficção. Mas é muito difícil, sim, ficcionalizar uma experiência real, e nisso meu editor me ajudou muito, porque ele me provocou a, inclusive, alterar a locução narrativa, a alterar o estilo. E isso te distancia de uma maneira que alivia um pouco. É muito difícil mesmo se você escreve tudo na primeira pessoa, como se fosse você. Agora, de repente, você não fala do gato, fala como se fosse o gato, aí eu fico mais tranquila, acho um pouco menos difícil.
– Você acabou de estrear como escritora e viveu a paixão de Dom Pedro na TV. Como está sendo esse seu momento?
– É um mês muito feliz, de muita criação, em que estão frutificando dois projetos muito importantes: tanto a novela quanto o livro, que está sendo feito há muito tempo. É um grande prazer. Depois de dar à luz esses dois projetos, vou entrar num vazio, que também vai ser muito importante para eu entender quais serão meus próximos passos, em que vou dedicar minha energia criativa agora. Gosto das duas coisas. É como o surfar da onda e depois ter que passar a rebentação de novo. Estou em pé na prancha, daqui a pouco acaba.
– Mas, com relação à escrita, há planos para novos livros?
– Não sei ainda o que vou fazer. Continuo tocando meus projetos como atriz, Tenho uma ou outra coisa de teatro, mas o momento da cultura está muito difícil no país, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Estamos vivendo uma crise muito séria, com relação à valorização da cultura. Parece que as pessoas no poder, atualmente, estão achando que a cultura é algo supérfluo, que é um luxo dispensável. E, na verdade, ela tem a ver com saúde mental, com educação, tem a ver com identidade nacional. Então, o mar não está para peixe. De qualquer maneira, vou tocar, independentemente de qualquer coisa, projetos de teatro, e aí vou decidir se vou encarar a escrita de uma novela, não novela de TV, mas como estilo literário, um pequeno romance, um livro de contos ou uma peça mesmo. Ainda não bati o martelo.
– Seu livro termina com um posfácio, que funciona como um making of. Nele, você revela algumas curiosidades sobre os contos. Isso não tira o mistério dos textos?
– Falo mais sobre o que é verdade e o que não é em cada conto. No conto tal, se o gato narrador é filho ou não do tal ladrão, como eu roubei esse gato, que parte é inventada e que parte não é. Tem umas curiosidades para além da ficção. Traz um charme para o livro. Acho que ele dá uma desconstruída divertida. Ainda não tenho tanto retorno, porque o livro acabou de ser lançado. Mas teve uma pessoa desconhecida que me procurou depois que leu e adorou. Ela me disse que é muito curioso você se envolver com a história e depois ler. É quase que uma sátira do próprio texto.
“Nem sofá, nem culpa”
Autora: Luisa Micheletti
Editora: Touro Bengala (107 páginas)