Em “Antes de nascer o mundo” (Companhia das Letras, 280 páginas), lançado lá em 2009 e agraciado com o prêmio Camões de Literatura, Mia Couto nos apresenta um menino que habita o silêncio. Certa vez, li uma entrevista dele em que dizia que, quando criança, era visto como aquele a quem não se davam tarefa, pois consideravam que ele, hoje um dos escritores mais aclamados do mundo, ocupava um lugar de certa incapacidade. Nesse ponto do diálogo, o autor moçambicano confessa aos repórteres que se identifica com sua criatura.
“Eu era realmente uma criança quieta e calada. Se agora se tornou comum aquilo que rotulam como ‘hiperatividade’, pode-se dizer que eu era uma criança ‘hiperinativa’. A personagem desse meu livro sou muito eu. Sou eu na relação com o meu pai, que não via ausência no fato de eu ficar calado. Acredito que uma grande fonte de aprendizagem de um escritor são os silêncios, estes momentos em que o mundo fica suspenso, à espera de reganhar sentido. No meu país, a relação com as pausas silenciosas numa conversa de amigos é de absoluta tranquilidade. Nos momentos de silêncio, ninguém se apressa a dizer qualquer coisa com medo de que haja um vazio. Não há ausência no silêncio”, comenta o escritor em entrevista concedida a mim na última semana.
Decidi voltar a esse personagem e a essa obra porque é sobre “Antes de nascer o mundo” que Mia Couto conversa com o público brasileiro no próximo dia 12 de abril, às 17h30, no Centro Cultural Banco do Brasil, instalado no Rio de Janeiro. E quem escolheu esse livro, através do Twitter, foi o público do CCBB RJ. Trata-se de mais uma edição do Clube de Leitura do CCBB, encontros realizados gratuitamente, até dezembro, sempre na segunda quarta-feira de cada mês. Como convidada virtual e responsável por fazer perguntas ao autor por meio de um telão, o evento contará com a atriz e também escritora Stella Maris Rezende. Os interessados em participar do bate-papo, no dia do encontro, devem retirar o ingresso na bilheteria do CCBB ou pelo site bb.com.br/cultura.
Nesta entrevista, o autor fala sobre a relação entre a nossa literatura e a dos países africanos de língua portuguesa; conta quais são os autores da literatura brasileira contemporânea cujos livros o tocaram; e reflete sobre a mudança nas relações entre Brasil e África com a volta de Luís Inácio Lula da Silva à Presidência da República.
Em entrevista concedida em 2013, ao falar sobre suas leituras, você comentou a emoção que sentiu ao ler “O vestido”, de Carlos Drummond de Andrade. A lista de escritores brasileiros que fazem parte de sua história como leitor passa, também, por João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa e Hilda Hilst, entre outros nomes. Qual ou quais autores brasileiros que estão produzindo hoje estão emocionando você? E quais as reflexões que eles despertam?
Os contatos que tenho hoje com a nova literatura brasileira são esporádicos e erráticos. É curioso que há cinco décadas havia uma ligação mais próxima entre a literatura brasileira e os países africanos de língua portuguesa. Num tempo em que prevaleciam regimes ditatoriais no Brasil e em Portugal e nas suas colônias africanas, estávamos mais ligados com os escritores do Brasil do que agora. Hoje simplesmente não chegam livros brasileiros a Moçambique. Assim sendo, tudo o que listar entre autores novos do Brasil agora fica sujeito a graves erros e omissões da minha parte. De qualquer modo, tocaram-me muito livros que chegaram a meu conhecimento de autores e autoras como Carla Madeira, Itamar Vieira Júnior, Ricardo Aleixo, Julian Fucks, Aline Bei, Jeferson Tenório, Socorro Acioli, Conceição Evaristo. O que eu vejo neste leque de autores é que continua viva a enorme diversidade de escolas, estilos e correntes. Essa literatura de uma nação tão imensa e tão plural continua a traduzir as vozes tão díspares que compõem as culturas do Brasil.
Mia Couto tem uma grande quantidade de leitores no Brasil, e isso me faz pensar no que você disse certa vez sobre “Grande Sertão:Veredas”, de Guimarães Rosa. Segundo você, “há ali um território que não tem geografia e, portanto, toca os moçambicanos, porque aquele sertão é o mundo inteiro”. Já parou para pensar sobre o que na sua literatura toca tanto os brasileiros?
Não sei pensar nesses termos. Já fico feliz se os meus livros tocarem um pequeno número de pessoas. Mas fico grato se existirem brasileiros que encontraram uma qualquer afinidade com os meus livros. Porque se trata de uma espécie de grata devolução à grande fonte de inspiração que me veio do Brasil. Não foi apenas Guimarães Rosa. Foram muitos os brasileiros que nos marcaram não apenas como influência literária, mas como sugestão de um caminho possível para a língua portuguesa que queríamos que fosse nossa, mas que marcasse a diferença de uma outra identidade. Se há um nome que deve ser referido acima de todos os outros é o de Jorge Amado. Essa entidade chamada África existe muito nos brasileiros, mesmo que muitos dela apenas reconheçam aquilo que é imediatamente visível. Mas é bem mais do que isso. Na percepção do que é divino, na ideia de corpo e do tempo, da fronteira entre o público e o privado e entre a rua e casa, em tudo isso, há muita África no Brasil. Talvez essa partilha de deuses e de mundos faça com que os nossos autores se possam sentir em casa ao serem lidos no outro lado do oceano.
Nessa passagem pelo Brasil para participar do encontro do Clube de Leitura, no dia 12 de abril, você vai ler e comentar trechos de “Antes de nascer o mundo”, obra lançada em 2009. E é o público brasileiro que escolheu esse livro. Há escritores que, por inúmeros motivos, preferem não revisitar seus escritos. Como é essa experiência de reler um livro seu lançado há quase 15 anos?
Faço-o apenas por obrigação. E quando o sentimento é quase sempre de acanhamento: como fiz tamanha asneira? Há, sobretudo, uma sensação de uma certa adolescência em que queria fazer bonito. Ora a beleza não se exibe. Revela-se. Sem pressa, sem artifício. Há momentos, porém, em que sinto saudade daquela espontaneidade, sem o alerta da contenção. De qualquer modo, leio com distância crítica e sem me deixar envolver pelos personagens que estão emboscados à espera que os revisite para ressuscitarem numa outra história. Para começar um novo livro, preciso de matar simbolicamente o que já viveu obsessivamente dentro de mim.
Em entrevista publicada pouco antes das eleições brasileiras, você disse que o período em que Jair Bolsonaro ocupou o posto de presidente foi desastroso para a imagem internacional do Brasil. Além disso, ressaltou que ele virou as costas para a África, lembrando um episódio em que o ex-presidente disse que “os africanos e os brasileiros de matriz africana são gente que não serve nem para procriar”. Como a África está vendo esse novo tempo vivido no Brasil com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva?
Com grande esperança. O Presidente Lula já anunciou que vai visitar os nossos países. Ele vai apenas dar continuidade a uma política de colaboração que ele mesmo já tinha criado e que foi cancelada durante os últimos quatro anos. O nosso desafio comum é bem mais do que diplomático. Temos de nos conhecer melhor. Os nossos livros devem circular mais e melhor. O que circula hoje são delegações dos que converteram a religião num negócio. O Brasil não tem apenas de visitar África. Tem de descobrir as Áfricas várias que há dentro de si. Os africanos também têm muito trabalho pela frente para darem a conhecer aos brasileiros a sua modernidade e as suas identidades tão diversas. A simplificação do que é África é uma doença que atinge um grande número de brasileiros de todas as raças e origens. Não admira. Esse desconhecimento de si mesmo atinge os próprios africanos. A pior ameaça que pesa sobre nós não é apenas a ignorância, mas a tendência de essencializar e folclorizar o outro.
“Antes de nascer o sol”
Autpr: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras (280 páginas)
Clube de Leitura do CCBB
Encontro com Mia Couto – Dia 12 de abril, às 17h30, no Centro Cultural do Banco do Brasil (Rua Primeiro de Março 66 – Centro – Rio de Janeiro).
Os interessados em participar do bate-papo, no dia do encontro, devem retirar o ingresso na bilheteria do CCBB ou pelo site bb.com.br/cultura.