Os relatos que estão nos registros convencionais não interessam ao poeta. Eles já foram contados e recontados diversas vezes pelos historiadores. A ele importa registrar o cotidiano de personagens comuns que, de alguma forma, são marginais dentro da História Oficial. O cenário revisitado é o Brasil da segunda metade do século XIX, mais especificamente a Zona da Mata de Minas Gerais. “Romance dos desenganados do ouro & outras prosas” (Faria e Silva, 160 páginas), composto por poemas narrativos, é o novo livro do escritor Fernando Fiorese, também professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. O lançamento está programado para o dia 14 de setembro, a partir das 10h, na Atena Bookstore (Rua Santo Antônio 583 – loja 52 – Centro).
“Ao leitor desde já convém dizer/ Que muitas outras vidas atravessam/ Anônimas as linhas que vai ler;/ E senão dão as caras nem dão trela,/ É mercê procurar entre os fantasmas/ Que assomam junto às cruzes esquecidas/ Pelos caminhos e trilhas da Mata,/ E maculam os álbuns de família/ Com suas misérias, seus medos, suas taras,/ E tramam as mais esconsas verdades/ Pelas brechas onde a História turva,/ São espectros de toda laia e praxe,/ A pungir com suas dentaduras duplas/ Os mitos e a medula das Geraes”, anuncia a voz narrativa de “Romance dos desenganados do ouro & outras prosas.”
Nascido em Pirapetinga, na Zona da Mata mineira, Fernando Fiorese é autor de obras, como “Ossário do mito”, “Copo portátil: 1986-2000” e “Um dia, o trem.” Nesta entrevista, ele reflete sobre a importância de dar voz àqueles que são cotidianamente silenciados, mas que representam, de forma mais autêntica e significativa, a nossa história. “Eu acho que esses personagens comuns dizem muito mais, permitem uma empatia muito maior de nós homens comuns, que também somos atores da história. Eu não me identifico com César, não me identifico com Cleópatra. Eu me identifico com os seus serviçais, com aqueles sujeitos que atuavam nos bastidores ou na vida cotidiana.”
“Romance dos desenganados do ouro & outras prosas” sugere que se trata de uma obra em prosa. Contudo, o livro é composto por poemas narrativos. Por que a escolha desse título?
Na realidade, a palavra “romance”, apenas a partir do século XIX especificamente, começa a ser mais utilizada para falar de uma narrativa linear, que conta uma história, o que hoje chamaríamos de prosa de ficção. Originalmente, a palavra “romance” nomeava um conjunto de poemas narrativos que contavam histórias. Por exemplo, “Romanceiro da Inconfidência”, da Cecília Meireles, se chama “Romanceiro” porque, quando você reunia vários desses poemas narrativos num volume, isso era chamado “romanceiro” porque reunia romances. Ou seja, poemas narrativos que narram histórias. Em relação ao adendo que tem no título, “e outras prosas”, é exatamente porque existe aí um trânsito mesmo entre a poesia enquanto um registro específico, enquanto um modo de escrita específico, e essa vontade também de dialogar com a narrativa. Então, eu faço essa brincadeira, embora o editor tenha me aconselhado a não fazer. Mas, de qualquer forma, é um livro que tem um horizonte muito específico, ou seja, ele trabalha com essa história da Zona da Mata ali na segunda metade do século XIX e começo do século XX, quando a Zona da Mata começa, de fato, a ser ocupada em definitivo.
Por que revisitar a história do Brasil, tendo a Zona da Mata de Minas Gerais como lugar privilegiado? Por que esse recorte histórico?
Eu comecei a partir da leitura de um livro publicado pelo IBGE, que se chama “Atlas das representações literárias das regiões brasileiras”. É uma coleção de livros, e existe um livro que fala das representações dos sertões e aqui, a Zona da Mata, o leste de Minas Gerais, não apenas a Zona da Mata, mas o leste de Minas, eram os sertões proibidos, ou seja, era uma barreira em que era proibido circular para que se evitasse contrabando do ouro, que era explorado no centro de Minas. Então, essa região foi inabitada por brancos até o princípio do século XVIII. Quando, no final do século XVIII, as Minas começam a se esgotar, primeiro, as pessoas mais pobres, que não tinham condições de sobreviver com uma economia em decadência, vão migrar para outras regiões, e uma dessas regiões é exatamente a dos sertões proibidos, o leste de Minas Gerais. Tanto que as cidades mais velhas que nós temos aqui na Zona da Mata remontam a 1850, como é o caso de Juiz de Fora. Então, ou seja, é a partir de 1850 que, de fato, começa a se implantar uma colonização, uma ocupação da terra nessa área. E quando eu, lendo esse livro, um historiador que trabalha aqui na UFJF vai mostrar as representações literárias dos sertões proibidos e são muito poucas. Ele vai se referir, basicamente, ao Luiz Ruffato. Então falei: “não tem essa representação, essa representação é diminuta, né?”. Talvez ela até exista, esteja espalhada por aí, e o historiador não teve condições de acessá-la e tal, mas foi uma coisa que me interessou, até porque eu nasci na Zona da Mata. Não em Juiz de Fora, mas numa pequena cidade mais ao norte. Conheço muito bem a Zona da Mata e, a partir dali, eu comecei a recolher histórias. Não as histórias que estão nos livros oficiais, e não a respeito de pessoas que são nomes de ruas ou de praças, mas os personagens que, de alguma maneira, mostram o avesso desse processo elogiado pela história oficial, porque foi um processo que terminou com os índios, é um processo de brutal violência. Então, eu me refiro ao fato de que os índios aqui foram exterminados muito rapidamente. Não há nenhum poema dedicado aos índios especificamente, mas há poemas dedicados aos homens e mulheres que foram escravizados para que essa região fosse transformada numa área de agricultura e de pecuária. E, depois, o processo industrial. A esse livro se seguirão mais três outros. Eu planejo uma tetralogia. Haverá um próximo volume, que já está quase acabado, em que eu trato dos anos 10 e 20, abordando o processo industrial em Juiz de Fora e na Zona da Mata. Estou recolhendo esse material e estou transformando em poemas e, depois, eu pretendo lançar um terceiro volume, que vai falar sobre as duas ditaduras, a Vargas e a de 64. Todas elas com enormes impactos sobre a Zona da Mata. Por fim, no último volume, se eu conseguir sobreviver aos três anteriores, vou fazer uma homenagem mesmo a todos os escritores da região.
Em sua obra, personagens, acontecimentos e paisagens que não estão presentes na história oficial ganham destaque. Gostaria que reforçasse a importância de dar voz a esses atores silenciados ou excluídos dos registros históricos convencionais.
Existe uma leitura que era obrigatória quando eu era estudante de Comunicação, de uma professora da área de História, um livro do historiador Edgar de Decca, chamado “O silêncio dos vencidos”, onde, pela primeira vez, ele procura apresentar o discurso daqueles que perderam a revolução que resultou na Ditadura Vargas. E isso sempre me interessou muito, ou seja, aqueles personagens cujas histórias foram apagadas, e, em qualquer processo histórico, os vencedores acabam sendo os proprietários do discurso. Eles não vencem apenas do ponto de vista político, econômico, social, ideológico. Os vencedores vencem, também, porque silenciam os outros e se apropriam do discurso. Ainda bem que hoje, desde os anos 20 do século passado, você tem uma história que se dedica a isso, que é a nova história, que se dedica a estudar aqueles objetos, aqueles acontecimentos, naqueles personagens que nunca frequentaram a história oficial. E ainda bem que, na Universidade Federal de Juiz de Fora, você tem um número bastante expressivo de professores, e não apenas na UFJF, mas também em outras universidades, mas li muito esses professores. Professora Mônica Ribeiro, professora Cláudia Viscardi, professor Marcos Olender, que se dedicam a estudar essa história que ainda não foi contada.
E são vozes que acabam contribuindo para uma visão muito mais complexa do processo histórico…
Eu acho que esses personagens comuns dizem muito mais, permitem uma empatia muito maior de nós homens comuns, que também somos atores da história. Eu não me identifico com César, não me identifico com Cleópatra. Eu me identifico com os seus serviçais, com aqueles sujeitos que atuavam nos bastidores ou na vida cotidiana. Há muito anos, um senhor da minha cidade escreveu um livro sobre a história da minha cidade. Eu fui ao lançamento, já tinha lido o livro antes. Ele registrava os prefeitos, os presidentes de câmara, os padres e tal. Aí eu virei para ele e falei: “mas onde está a minha história?” Não a minha história pessoal, mas a daqueles personagens que, de fato, restaram na minha memória: os mendigos, os andarilhos, o doidinho do bairro. Quando você pensa na sua cidade, você não se lembra de um prefeito. Aqui em São Mateus, por exemplo, tinha um morador de rua chamado Tatu, que os meus filhos conheceram, que eu conheci. Então, ele faz parte da história. Ele é muito mais representativo de Juiz de Fora, para mim, que estou aqui há muitas décadas, do que um prefeito que eu nem lembro mais o nome.
Às vezes, a literatura revela verdades mais profundas do que a própria história oficial…
É muito mais fácil você conhecer o cotidiano do Rio de Janeiro, no século XIX e começo do século XX, pela narrativa de Machado de Assis do que pelos relatos historiográficos, porque os relatos historiográficos estão interessados nos grandes nomes e nos grandes acontecimentos. Por quê? A gente não sabe. É uma definição do historiador. Ele acha que aquele acontecimento foi determinante, foi grande. Mas se você quiser conhecer a história, como as pessoas viviam, como as pessoas comiam, como pensavam, a literatura vai oferecer isso com muito mais fartura de detalhes.
A construção da sua obra parece desafiar as narrativas históricas lineares e convencionais. Como essa abordagem impacta a forma como o leitor se relaciona com a história contada em seus poemas?
O que eu espero é que as pessoas se identifiquem, que se desenvolva uma relação de empatia com os personagens. Até porque, em muitos casos, são os próprios personagens, e não o narrador onisciente, que conta a história. Há também o caso de narrador onisciente, mas, em geral, é o personagem. Então, você tem o sujeito que trabalha numa tropa de burros. É ele quem narra a história, com a linguagem dele, com a visão de mundo que ele tem. Eu tenho que encontrar uma voz, que não é a minha, para narrar essa história. E eu, obviamente, crio uma certa relação de empatia com ela. E a minha expectativa é que o leitor também estabeleça essa relação de empatia, ou seja, alguém que, junto de você, narra a sua própria história, a história da sua vida, ou de algum acontecimento relevante para a sua vida. Então, é sempre a expectativa de que as pessoas percebam, e acho que boa parte das pessoas percebe. As respostas que tenho recebido de leitores apontam isso. Que as pessoas percebam que o que você tem ali são pessoas comuns, como qualquer um de nós, narrando as suas vidas. Então, se a vida desse outro anônimo, desconhecido, tem importância, a minha também tem alguma.