O antirracismo é uma forma elevada de praticar o amor, inclusive o próprio

Por Lucimar Brasil, jornalista e empreendedora

Tornei-me negra em 2011.

Isso significa dizer que passei 42 anos da minha vida praticamente desconectada das origens afrodescendentes que caracterizam minha cultura, ou seja, das memórias da ancestralidade. Como uma planta que desconhece suas raízes, por raramente ouvir falar delas – até porque, quando isso se dava, o contexto era quase sempre depreciativo -, era natural que fosse tomada por um sentimento constante de inadequação.

Afinal, não participava do que se convencionou classificar como modo de “vida de negro”, e, muito menos, do cobiçado e inalcançável estilo de “vida de branco”, ambos definidos pela imposição do sistema colonialista que, embora tenha acabado faz tempo, insiste em pautar as complexas e intricadas relações humanas até hoje, no Brasil.

Tornar-se negra, portanto, não é algo tão fácil ou tão óbvio como olhar-se tranquilamente no espelho e identificar a tonalidade da pele e os traços característicos no rosto, como o nariz achatado, a boca carnuda e os cabelos crespos.

É, antes, e muito mais, um cair em si diante de uma sociedade que, inexoravelmente, inclusive por meio de disfarces, vai te rejeitar em algum grau, porque também ela foi forjada a acreditar na existência de uma raça subalterna, preguiçosa, animalizada por dotes e contornos corporais, suja, menor, periférica.

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Foto: Fernando Priamo

Assumir-se negra, portanto, exige muita saúde psíquica, coragem e autoamor, sentimentos complexos que, dependendo das histórias individuais e do ambiente coletivo, podem custar o tempo de toda uma vida para serem alcançados. Isso, quando o são.

Eu, por exemplo, precisei de mais de quatro décadas para tornar-me negra, e vira e mexe ainda tenho que me lembrar do quão fácil é me deixar enganar por um pretenso e falso discurso racial igualitário, construído na superficialidade da atualíssima casa grande, porque, convenhamos, é extremamente desafiador exercitar a empatia, quando o ego precisa ser colocado em uma posição social histórica de inferioridade.

Me pari com a Classe C

Meu parto como negra se deu durante um evento empresarial em São Paulo, em plena efervescência da expansão da Classe C, ou seja, mais ou menos no período em que as empregadas domésticas começaram a comprar pacotes de férias para a Disney. O auditório estava repleto de profissionais de comunicação e marketing, ávidos em conhecer o novíssimo perfil de consumidores de quem pouco ou nada tinham ouvido falar.

Foi sob este clima quase exótico na história recente do país que assisti, pela primeira vez na vida, uma palestra enaltecendo o poderio econômico e a ascensão social da população negra no Brasil.

Enquanto os coleguinhas comemoravam a descoberta sob a qual suas empresas construiriam novas estratégias de negócio, com negras e negros lindos e empoderados nas peças publicitárias, caí em prantos. Como, aliás, ocorre, naturalmente, na hora do parto.

Me dei conta que era do meu povo que falavam. Me vi e nos vi nas fotos das projeções que ocupavam os enormes telões no palco, com nossa alegria costumeira e nossos trajes coloridos, apesar da dor aguda em preto e branco de séculos de exploração, com nossa inteligência, nossa religiosidade tão peculiar, nossa culinária, nossas tradições, nossa capacidade de resistência e superação.

Isso explica, em parte, porque a representatividade é tão importante. Quem não se vê dificilmente se reconhece capaz.

Privilégios que cegam

Essa primeira visão de mim e da minha gente, há somente 11 anos, tem explicação. Mesmo sendo mulher e afrodescendente no Brasil, tive o privilégio de nascer no seio de uma família humilde, mas estruturada, e, graças aos esforços persistentes de minha mãe, que, sabedora que “vida de nego é difícil”, tratou de tomar providências para garantir que os filhos tivessem o que ela e meu pai não tiveram: educação formal.

Por isso, eu e minha irmã gêmea, caçulas de uma família de seis, fomos agraciadas com outro privilégio: estudamos, da terceira série primária ao terceiro ano do Magistério, em um colégio particular, de classe média, comandado por freiras.

Acolhidas, respeitadas e valorizadas por colegas e professores de ampla maioria branca, nos distanciamos enormemente de nossas origens. Afinal, era possível contar nos dedos o número de crianças negras que frequentavam o mesmo universo. Assim, era compreensível que temas de negritude não entrassem frequentemente em pauta.

Anos depois, na Faculdade de Comunicação Social, da Universidade Federal de Juiz de Fora, instituição pública, a mesma realidade se impôs, se não de forma mais marcante. Eu era a única negra da turma de 25 alunos.

Vez ou outra, angolanos e nigerianos, que exibiam seus portentosos colares de ouro, que brilhavam ainda mais no contraste com a pele escura, me faziam companhia. Pelo menos na proximidade da cor. E só. Não me lembro de ter tido um professor negro na Federal.

Com o diploma de jornalista debaixo do braço entrei para o seleto funil social dos que conseguem exercer sua profissão e crescer por meio dela. Em mais de 30 anos de trabalho, em diferentes empresas, de diferentes segmentos e portes, ainda consigo estimar, sem muita matemática, o número de pessoas negras com as quais trabalhei em todo esse tempo. Ainda mais quando ocupei cargos de liderança. Experimentei a solidão da cor.

A pandemia, a escrita, o cisne

O antirracismo é uma forma elevada de praticar o amor a si e aos outros. É um amar exigente, porque toca inevitavelmente em feridas internas, que muitos preferem fingir que não as têm. Imagina se reconhecer racista? Quem? Eu? Já ouviu falar em vieses inconscientes? Então, procure saber.

Para ser antirracista, particularmente, precisei ter ampla consciência de mim mesma, tornar-me negra, constatar que verdades à queima-roupa, ainda que reveladas na solidão, costumam doer bastante, antes do seu terapêutico efeito libertador. A liberdade é o bálsamo que premia os que não têm medo de se enxergar e corrigir as devidas rotas sociais remanescentes do colonialismo. Estou refazendo as minhas. Inclusive por esta escrita e pela ocupação deste espaço, que passará a ser quinzenal.

É que, por mais paradoxal que pareça, a pandemia me aproximou dos meus iguais. Pela primeira vez, frequentei ambientes exclusivos para pessoas negras, e ouvi histórias lindas de superação, empreendedorismo, autoconhecimento e liderança, assim como outras, inacreditáveis, de preconceito e exclusão, em pleno século do metaverso.

E ali, ao lado dos meus, me senti mergulhada no conto infantil do Patinho Feio. Na verdade, somos cisnes. É que, às vezes, para nos reconhecer e ganhar forças para agir no mundo plural, a gente só precisa mesmo encontrar nossa turma.

COMPARTILHANDO

  • Livro (Sugestão da artista plástica Bárbara Morais de Paula)

“Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social” – Neusa Santos Souza. Leitura extremamente necessária.

  • Série de TV (Recebi da influencer Patida Mauad)

“Da África aos EUA: uma jornada gastronômica” (Netflix). O primeiro episódio, na África, já mostra o quanto a série é sensacional.

  • Evento online e gratuito

“Potências Negras Mulheres”

YouTube, 13 de abril, das 9h às 18h.

Inscrição: www.potenciasnegras.com.br

  • Empoderadas

Destaco duas empreendedoras negras: a maquiadora Tamires Laurentino (Black Beauty Studio) e a manicure Tatiana Lúcia (Tatiana Lúcia Esmalteria).

Lucimar Brasil

Lucimar Brasil

Lucimar Brasil é jornalista (UFJF) com formação em Impacto Social (Instituto Amani e Gera Social) e em Liderança para Mulheres Pretas (Academia Firminas). Empreendedora, é responsável pela Gente de Conteúdo Comunicação e pelo próprio blog www.lucimarbrasil.com.br, onde publica artigos de diversas inspirações.

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