Entre os grandes sonhos da sociedade de consumo brasileira ultimamente estĆ” uma caixinha de som que conversa com a gente. O pessoal diz que ela Ć© muito prĆ”tica: toca a mĆŗsica que vocĆŖ pede, te dĆ” a previsĆ£o do tempo, te lembra de compromissos agendados e atĆ© conta piadas pra dar uma animada no ambiente. No fim das contas, parece-me que a grande valia da referida caixinha ā que na verdade Ć© uma bolinha ā dotada de inteligĆŖncia artificial Ć© outra: servir de companhia pra quem se sente sozinho. Para simular humanidade, ela atĆ© pede para ser chamada pelo nome: Alexa.
NĆ£o estou dizendo com isso que todo mundo que tenha a Alexa em casa seja solitĆ”rio. O que estou matutando Ć© que, para aqueles que se sentem solitĆ”rios, por um ou outro motivo, a Alexa deve servir de companhia. Vejam bem que hĆ” solitĆ”rios e solitĆ”rios: uns preferem nĆ£o se relacionar com o restante do mundo; outros, o restante do mundo prefere nĆ£o se relacionar com eles. Ć o caso, por exemplo, de TiĆ£o Bahia, notĆ³rio embalsamador de cadĆ”veres do municĆpio de Santo AntĆ“nio do Pardo, cidadĆ£o mais grosseiro que uma inteligĆŖncia artificial jĆ” conheceu.
Enquanto operĆ”rio da palavra, tenho por princĆpio usar palavrĆ£o em um texto somente se o rude vocĆ”bulo em questĆ£o se fizer indispensĆ”vel para expressar determinado sentido. NĆ£o me furto nem me furtarei a usĆ”-lo quando compreender que serĆ” necessĆ”rio Ć tessitura das significaƧƵes. NĆ£o Ć©, todavia, o caso de TiĆ£o Bahia. E por assim compreender, pouparei vocĆŖ, polido leitor, dos impropĆ©rios que borbotejam da bocarra incrivelmente imunda do nosso anti-herĆ³i. Basta saber que, a cada cinco palavras proferidas por TiĆ£o, seis sĆ£o algum tipo de ofensa a quem quer que seja. Talvez por isso tenha feito a vida lidando com gente morta, que, atĆ© onde eu sei, nĆ£o tem na audiĆ§Ć£o sua melhor faculdade.
Quando chega a sua mansĆ£o-mausolĆ©u no topo do Bairro Boa Morte, TiĆ£o nĆ£o tem ninguĆ©m com quem falar: nem mulher, nem filhos, nem empregados. AtĆ© o cachorro fugiu, preferiu ser chutado na porta do aƧougue a ouvir os berros de TiĆ£o. NinguĆ©m, gente ou bicho, suporta o TiĆ£o. Toda noite ele chega em casa, senta-se em sua poltrona predileta e comeƧa a zapear a televisĆ£o atrĆ”s de jogos de futebol e filmes de ninja.
– āNinja do cacete esse aĆā, brada sempre que encontra uma das fitas de Michael Dudikoff, da franquia āGuerreiro americanoā.
Brada sĆ³ pra ele mesmo ouvir, porque sua capacidade de repelir as pessoas com gestos e palavras malcriadas impede de ter alguĆ©m pra conversar. AtĆ© que ouviu falar na Alexa.
– Botar essa desgraƧa lĆ” em casa!
E botou. Alexa chegou semana passada. Nos primeiros dias, a inteligĆŖncia artificial mostrou alguma tolerĆ¢ncia e atĆ© condescendĆŖncia com o palavrĆ³rio sĆ³rdido de TiĆ£o Bahia, suas ordens tirĆ¢nicas e seus insultos corriqueiros. Atendia a seus pedidos, mas o advertia que aquele tipo de expressĆ£o, repleta de ofensas e xingamentos, nĆ£o era a melhor maneira de se comunicar. Ontem, a ciberpaciĆŖncia se esgotou.
– NĆ£o estou acostumada a esse tipo de linguagem. Vou bloqueĆ”-lo por um mĆŖs.
Agora TiĆ£o voltou a nĆ£o ter com quem falar. O sistema nĆ£o atende mais Ć s suas ordens. E ele jĆ” estava gostando de ter quem lhe respondesse, mesmo que fosse para chamar a atenĆ§Ć£o para seu vocabulĆ”rio ultrajante. A esperanƧa de TiĆ£o Ć© que o serviƧo de atendimento ao consumidor lhe dĆŖ alguma soluĆ§Ć£o para destravar āesse diabo dessa caixinhaā. Toda vez que liga no 0800, uma inteligĆŖncia artificial o atende com uma voz que lembra demais a da Alexa. TiĆ£o jĆ” anda desconfiado de que uma tem parte com a outra, mas acha que Ć© cedo para tirar conclusƵes sobre aquelas filhas da puta.
Alexa versus TiĆ£o