É irônico que as plataformas digitais de interação social, que permitem que criemos para nós personas públicas nos moldes que nos seja conveniente, sejam justamente as responsáveis por, aqui e acolá, revelarem nossos outros eus. Um único vazamento de conteúdo que deveria ser privado e, pronto, está refeita sua imagem, conectado leitor, seja diante da família, dos colegas de trabalho, do mundo.
Não vai aqui juízo de valor, é mera constatação. É o procurador, defensor por ofício dos injustiçados, que no privado faz chacota com morte de criança. O jornalista crítico e vigilante que, em conversa particular, sugere que a atriz morreu de overdose e não de asma. O presidente da República que refere-se aos governadores do Norte e do Nordeste, num cochicho com correligionários, como “paraíbas”.
Há muitos anos, como jornalista de cultura, recebi uma valiosa lição que a impetuosidade da juventude e uma boa dose de arrogância de quem tem o poder da comunicação nas mãos me permitiram: não escrever sobre um artista o que eu não falaria em sua cara. Talvez eu tenha aprendido, talvez não, mas foi uma lição parecida com as que muitos têm encarado.
Todos são livres para zombar de crianças mortas, supor overdoses, ofender nordestinos e escarnecer do vício alheio. No seio da intimidade, quem nos impede? Absolutamente livres. Mas ao verbalizar nossos pensamentos, é bom saber que talvez tenhamos, um dia, de arcar com o ônus de nossas crenças e atitudes.
Pois até somos, sim, em certa medida, aquilo ali que mostramos nas telas luminosas. Mas, também e sempre, outros, obscuros.
Você não é apenas a pessoa comprometida do grupo profissional de WhatsApp, laborioso leitor, mas também aquele comentário infeliz que faz em privado sobre o colega da mesa ao lado. Aquele comentário maldoso é você também. Como também não é a virtude e a combatividade de seus posts no Facebook ou no Twitter, senão as mensagens autopiedosas que envia para os poucos que talvez te conheçam de verdade.
Nem é apenas o papo amistoso na mesa de bar, mas o apontamento malicioso que faz sobre aquele que se ausentou para ir ao banheiro. Como não é também aquela felicidade irremediável das suas imagens radiantes no Instagram, senão a melancolia das fotos escurecidas que envia na madrugada.
Como não sou, tampouco, apenas essa crônica pública, áspera e descartável, mas a soma das arquiteturas deste e de todos os meus outros eus.