Prezado Conselho Curador da Sociedade Célebre das Bandas de Herdeiros,
Venho humildemente por meio desta oficiar à insigne instituição meu requerimento de entrada no rol de musicistas vinculados a esta eminente organização, bem como pleitear acesso aos direitos e privilégios de tal associação advindos. Ainda que pese o fato de não ser filho de dono de gravadora, afilhado de maestro ganhador de Grammy e tampouco sobrinho-neto de vulto fundador da bossa nova ou tropicália, penso que reúno as necessárias credenciais hereditárias, que a fio passo a elencar.
Por herança, estão em minha formação – aliás, autodidata – incontáveis horas acompanhando meu pai em sua labuta de vender roupa de porteira em porteira da zona rural da microrregião de Ubá, ao som de Manhoso, Trio Parada Dura e Sérgio Reis no estéreo do velho Fusca azul. Fazem parte da fundação do meu caráter musical grandes hinos como “A força da mandioca”, “Fuscão preto” e “Saudade da minha terra”.
Some-se a isso o tempo passado ao lado de minha mãe, que pedalava estoicamente sua máquina de costura da marca Singer (curiosamente, vem a ser o vocábulo inglês correspondente a “cantor”) ouvindo em um rádio faturado no Baú da Felicidade as canções de Paulo Sérgio (“Última canção”), Jerry Adriani (“Doce, doce amor”) e Jane & Herondy (“Não se vá”), que deixaram indeléveis marcas em minhas vias neurais.
Em não bastando as características filiais herdadas, cumpre relacionar também a herança das audições de Roberto Carlos em casa de minhas tias, notadamente o álbum “Roberto Carlos canta para a juventude”; na roça, o medo terrível dos passos do robô gigante na capa de “News of the world”, do Queen, anunciados pela bateria marcial de Roger Taylor quando “We will rock you” tocava na Eletrola; a fita K7 de “Alucinação”, de Belchior, rolando em modo contínuo no Roadstar Auto-Reverse no Corcel branco do Tio Paulo.
Se há mais a exigir, cito a apreciação da comovente peleja de minha Tia dos Anjos para aprender os dois acordes de “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, em um recém-adquirido violão Di Giorgio, modelo Estudante 18, instrumento que, emprestado, me acompanhou no êxodo de Ubá a Juiz de Fora e permitiu-me rascunhar as primeiras canções autorais.
Tão importante quanto foram as noites ao lado do meu saudoso Tio Fernando em rodas de violão que ele convocava em torno de si, regadas a cachaça e tira-gosto, sob qualquer mínima desculpa para inventar uma celebração, para júbilo de toda a família. Dele, alma da festa, também sou herdeiro, por consanguinidade e afinidade gastronômico-musical.
Tendo bastado aqui a exposição das conspícuas hereditariedades que deve cumprir integrante desta altaneira Sociedade, por ser verdade firmo o presente ofício e peço deferimento.
Wendell Guiducci
Juiz de Fora, 27 de junho de 2023