O flamenguista

Por Wendell Guiducci

Entenda, ludopédico leitor: não cabe ao flamenguista ter os pés no chão. Sob as asas do urubu-rei, sua cabeça está permanentemente nas nuvens. Não faz por mal: é próprio de sua estirpe.

O flamenguista é oba-oba.

É já ganhou.

Não lhe caem bem a amargura ou o roer de unhas.

Todo mundo sabe: não há má fase que dê jeito no flamenguista.

Se lhe ameaça a segunda divisão, esse círculo infernal que jamais visitou, basta uma vitória magra sobre um bando qualquer de joões e muda o discurso: agora é rumo a Tóquio!

E não importa se é no Catar ou na Holanda, no Marrocos ou na Nova Zelândia: para o flamenguista, o El Dorado será sempre Tóquio.

É do flamenguista, do incorrigível flamenguista, esse negócio de distorcer um pouco a realidade, essa licença poética desmesurada, porque sempre embriagado de um amor maluco: Brocador é maior que Pelé, Uidemar é maior que Tostão, Obina é melhor que Eto’o.

Nos estádios, distorce música do Senna, distorce música dos Mamonas Assassinas, distorce música do Kiko Zambianchi, cria um novo hino a cada mês, todos mais populares que qualquer hit de Anitta, sem sequer pagar direito autoral.

A criatividade, como a autoestima do flamenguista, tem que ser estudada.

E imagine o futebolístico leitor: se o flamenguista é essa bufonaria mesmo nos tempos mais sombrios – ah, se sofri um dia, nem me lembro! -, imagina num ano perfeito como esse que se avizinha do apito final.

Serão dias e mais dias de festa. Festa na festa da firma. Festa na festa de casamento. Festa na festa de Natal e festa na festa de Ano Novo. Festa no asfalto. Festa na favela.

A festa rubro-negra, me perdoe o cronista-mor das coisas da bola, começou 40 minutos antes do nada. E só vai acabar 40 minutos depois do fim de tudo. Quando o último anjo do Senhor estiver recolhendo sua espada e se preparando para alçar o derradeiro voo, deixando atrás a Terra calcinada, haverá um filho de Deus, roto e descabelado, gritando do alto de um monte de cinzas:

– Mengo!!!

E subirá aos céus, incrédulo, o serafim executor.

Pois viu que nem no juízo final caberá juízo algum ao flamenguista.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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