O fardo das sensações

Por Wendell Guiducci

Quanto tudo isso acabar, será preciso lembrar que não foi a pandemia que nos afastou.

Que, antes do vírus antissocial, já havíamos aderido à antissociabilidade física em vários aspectos. Vem desde a invenção do telégrafo, depois do telefone, aí do email, das mensagens instantâneas, das videochamadas e, por fim, da Covid-19, que acelerou o processo de distanciamento, mas não o inventou.

“Vai lá nada, boba, dá uma telefonadinha que tá bom” já existia desde que o aparelho fazia “trim-trim” e comprar linhas telefônicas era investimento de gente rica.

Hoje evoluímos (?) para “Vamos marcar uma vinhoconferência”.

A vinhoconferência faz sentido se seus amigos moram no Canadá. Mas se moram no Vale do Ipê ou em Ubá, não, não faz sentido nenhum.

Questiono, hiperconectado leitor: bastará ao homem viver por áudio e vídeo? O vinho virtual, o aniversário virtual, o sexo virtual, a entrevista virtual, a consulta médica virtual, a aula virtual… melhor isso que nada, dirão alguns. É, talvez sim. Assumamos então que não sejam, por si só, ruins estas experiências de virtualidade. Mas também não nos enganemos: são melancolicamente deficitárias.

Por mais que possamos expressar ideias e sentimentos – alguns com maestria hitchcockiana – por sons, imagens e palavras, não é a mesma coisa que dividir o espaço físico. Não basta visão e audição. É preciso tato, olfato, paladar. Olhar no olho e sentir o cheiro da casa, ouvir não só o que se diz, mas o que vai por baixo do que se diz e não é dito pela boca, observar o entorno, sentir a firmeza no aperto de mão e, no abraço, calor e perfume. Ver e ouvir é tão importante para a construção da nossa memória – que é também nosso saber – quanto sentir: os cheiros, os sabores, os climas.

Mas, pouco a pouco, temos nos livrado do fardo das sensações. A tecnologia que nos aproxima dos distantes é a mesma que nos distancia dos próximos. Um paradoxo tão sem graça quando o trocadilho que o expressa, se me permitem o desaforo.

Lamento pelas crianças tendo aula no computador, sem juntar carteira para fazer trabalho, sem jogar bolinha de papel no crush, sem “te pego lá fora”. E pelas professoras na solidão sufocante do ensino a distância. E pelos amantes secos, faces mortas à luz azul das telas. E pelos homens em suas reuniões realizadas entre alt + tabs, sem dedicar atenção a nada.

Pois vivemos a oficialização da virtualidade, a extrema-unção do real tátil, por nossa culpa, nossa tão grande culpa. O que – não se iluda, cibernético leitor – nos deixará mais pobres, mais burros e seguramente mais tristes.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela Faculdade de Comunicação da UFJF, mestre e doutor em Estudos Literários pela mesma instituição. Na Tribuna, atuou como repórter de cultura e foi editor de internet, de esporte e do Caderno Dois. Natural de Ubá, hoje desempenha o papel de editor de integração da Tribuna e assina, todas as terças-feiras, a coluna de crônicas "Cronimétricas". Lecionou jornalismo, como professor substituto, na Faculdade de Comunicação da UFJF entre 2017 e 2019, e entre 2021 e 2022. É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério". Também é cantor da banda de rock Martiataka e organiza sua agenda rigorosamente de acordo com os horários de jogos do Flamengo. Instagram: @delguiducci

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