Há tempos eu não parava diante de uma banca de jornais. Mas semana passada estava lá no Parque Halfeld, observando como há mais isqueiros, chicletes e bugigangas do que revistas, procurando periódicos que não mais existem. Foi quando uma voz familiar me despertou do transe.
– Guiducci.
Era o cachorro de pelagem curta e cor-de-mel. Sua aparência não era muito boa. Parecia ter se envolvido em alguma briga, quem sabe fora atropelado. Saímos dali e nos sentamos num banco em frente à Câmara Municipal.
– Como vão as coisas? – indaguei.
– Era mais fácil quando não tínhamos que disputar restos de ossos com os humanos.
Havia um certo desalento em sua voz. Tentei animá-lo com um assunto que sempre o agrada: o projeto político dos cães de rua.
– E a volta à natureza? A reconquista da alma do lobo, como vai?
– Meio devagar. Muitas distrações.
Nada seria capaz de tirá-lo daquela prostração? Ele respirou fundo e então suspirou, como quem buscasse forças para continuar. E falou:
– Você precisa conscientizar as pessoas com o seu jornal.
– Como assim? Em que sentido?
– Será um ano duro esse 2022 e os humanos não podem ficar descontando suas frustrações em nós. Com a crise econômica, houve um aumento de 60 a 70 por cento no abandono de animais ao longo do ano passado. O Brasil caiu da classe C para a classe D no ranking global de proteção animal da World Animal Protection e não vai ser surpresa se terminar 2022 na classe E, com países como Paquistão, Indonésia e Ucrânia.
Eu nunca deixo de me maravilhar com o conhecimento que pode ser adquirido nos jornais velhos que forram calçadas. Inclusive de línguas estrangeiras.
– O impacto tem sido muito grande na rua?
– Enorme. Todo dia aparecem órfãos de humanos, perdidos sem suas coleiras, sem seus potinhos de comida, suas toalhinhas e toda sorte de facilidades pouco animais. Os mais fracos choram a noite toda. Alguns não admitem o abandono e passam os dias procurando o caminho de volta para casa, mas nunca encontram, viram fantasmas perambulando por aí. Outros criam facções organizadas para tentar reaver o que perderam, são vingativos. E há uns poucos que desertam para o lado dos cães de rua, e temos de treiná-los, ensiná-los a se virar no asfalto.
– Que coisa, rapaz.
– Isso tem criado um tremendo desequilíbrio na sociedade canina. Os conflitos são constantes. Todo nosso projeto de retorno à natureza, de recuperar nosso espírito de lobo, está atrasado. E não é só isso.
– Não?
– Não. Minha geração nunca apanhou tanto dos humanos quanto agora. Qualquer coisinha é chute no cachorro. Foi demitido? Chuta o cachorro. Atrasou a prestação do carro? Chuta o cachorro. Não tem dinheiro pra comprar carne? Chuta o cachorro!
A indignação dele era legítima e fazia me fazia sentir envergonhado. Ele se levantou e alongou o corpo magro _ até nisso os cães têm algo a nos ensinar.
– Use seu jornal. Conscientize as pessoas de que não temos culpa das opções políticas e econômicas desastrosas que vocês fazem.
E partiu em direção à Avenida Rio Branco, desviando habilmente do alvoroço de pernas e sacolas que borbotavam sobre as pedras portuguesas.
Chuta o cachorro