Moinhos de vento no Morro da Glória

Por Wendell Guiducci

Ao meio-dia no Morro da Glória, domingo ensolarado, um menino brincava com uma vara de bambu e um escudo feito com o que sobrou de uma caixa de papelão. Concentrado na batalha, defendia-se dos golpes de invisíveis moinhos de vento e contra-atacava com a lança sacada de alguma moita nas cercanias.

Movia-se compenetrado na calçada em frente a uma quitanda, que já não era quitanda, mas um mercado medieval. E os invisíveis moinhos de vento eram gigantes biomecânicos saídos dos devaneios de algum programador de videogames, e os óculos fundo de garrafa do menino a viseira metálica de um elmo cor de chumbo.

– Não fujais, covardes e vis criaturas; é um só cavaleiro o que vos investe – pensei tê-lo ouvido gritar.

A Igreja da Glória era agora uma abadia onde monges guardavam segredos e experimentavam com processos alquímicos recém-chegados das distantes terras da Pérsia. E o Colégio Santa Catarina, um mosteiro onde freiras enclausuradas oravam sem saber da batalha que se desenrolava no lamacento morro onde seu claustro encontra-se incrustado.

Abaixo, cruzando uma estradinha que corta o reino de Norte a Leste, erguia-se do bosque o majestoso palácio imperial, guardião de tesouros de valor inestimável, inalcançáveis para as vistas da plebe rude. Mas ali nada interessava a nosso herói: queria antes a rua e a ação, a glória dos bravos que não temem nada e que nada almejam senão o amor de alguma camponesa roliça do sexto ano do ensino fundamental.

E por isso – por amor, e só por amor – ele atacava sem parar, avançando contra os gigantes com sua lança de bambu amarelo, recuando somente para defender-se com seu escudo de papelão de quitanda. Na estrada-rua, trafegavam apáticos coches-carros, alheios ao clangor das armas.

Foi isso o que vi enquanto dirigia rumo ao Bar do Bode para um prato de sardinha ao molho de tomate e cebolas.

E quem por lá passou e o mesmo não viu, bem se vê que não anda corrente nisto das aventuras.

Ilustração de Gustave Doré para “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes (1863)
Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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