Da arte de lavar um carro

Por Wendell Guiducci

Lavar carro é uma instituição da cultura ocidental. Há quem o faça profissionalmente, como há quem o faça por prazer. Ou terapia, vai saber. Há quem o faça para economizar um troco e há quem o faça para ganhar o direito de dar uma voltinha antes mesmo de tirar a carteira de motorista – quem sabe até levar sua garota ao cinema, como sugeriu Rita Lee em “Papai, me empresta o carro” no ano da Graça de 1979.
Não negligenciemos, pois, o “car care” e a estética veicular como um todo, até porque a aparência do carro diz muito sobre seu dono ou sua dona. É como um sapato: dá pra projetar a personalidade do cidadão pelo estado do pisante. Se o camarada está com o tênis todo esculhambado e sujo, é desleixado; se a bota está meio surrada, mas em bom estado geral, é que o dono não tem lá muito tempo para a ideal zeladoria; se a sandália é antiga, mas bem conservada, o que a moça tem é estilo; e se o mocassim está indubitavelmente impecável, é bom desconfiar.
A psicologia da moda explica, assim, a importância que damos ao ritual da lavação do carro. Além do mais, é algo que se pode fazer em família, e aí tanto mais rápida será a operação: se alguém joga água com a mangueira enquanto o outro esfrega com sabão, o processo levará metade do tempo. Mas também é possível fazê-lo solitariamente, de preferência com vagar, a esponja descrevendo perfeitos círculos espumantes como preconizou o nunca suficientemente reverenciado Senhor Miyagi.
Não se pode subestimar, todavia, a faxina interna do possante. Limpar bem os vidros com jornal e álcool, lavar e esfregar os tapetes de borracha, aspirar o carpete, passar pano úmido no painel e no volante, cuidando para que a buzina não assuste cachorros e passantes. E lá se foi a manhã entre buchas e paninhos, esponjas e flanelas. O pretinho nos pneus, deixemos para os catedráticos da beira da calçada, que saberão a química correta da groselha com vinagre, da cola branca com açúcar, da cera líquida com corante xadrez.
E se você mora em um desses condomínios em que não te deixam exercer o sagrado ritual da lavação automotiva, por causa da conta de água ou do coração de pedra, ai de ti, oprimido leitor. Pois se houvesse nos tempos dos samurais essas carruagens modernas movidas a fogo, estaria ali, ao lado das artes do zen, como o chá, a espada, a caligrafia e as flores, a insuspeita arte de lavar um carro como um dos caminhos para a iluminação.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

A Tribuna de Minas não se responsabiliza por este conteúdo e pelas informações sobre os produtos/serviços promovidos nesta publicação.

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade pelo seu conteúdo é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir postagens que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.



Leia também