A alma do lobo

Por Wendell Guiducci

Outro dia, sentado em um banco do Parque Halfeld, travei conversa com um vira-latas de médio porte e pelagem curta e cor-de-mel. Falávamos da falta de estimativas sobre a população canina de rua.
– Sabe-se, por exemplo, que em São Paulo as ONGs recolhem cerca de 500 cães por mês. E que em todo o país os canis municipais estão superlotados. Mas não há números sobre a população canina de rua. Não podemos ser contados. Somos muitos. E vamos voltar à natureza.
– Como assim “voltar à natureza”?
– Veja bem, você sabe que o cão de estimação nasceu de uma domesticação de lobos preguiçosos demais para caçar, não é? Eles seguiam as tribos nômades para se alimentar dos restos de comida que os homens deixavam. E assim, quando as tribos decidiram fixar-se e cultivar a terra, os lobos mansos acabaram sendo incorporados àquele sistema social num regime de permuta: não precisavam mais caçar para se alimentar e, em troca, protegiam a propriedade. Viraram cães de guarda e, posteriormente, com a evolução das culturas, foram adestrados para essa ou aquela função.
Era um cão bastante articulado aquele do Parque Halfeld.
– O nosso projeto, cães de rua, é resgatar o espírito do lobo. Ainda somos 98% lobos em nosso DNA. Devemos voltar à natureza. É nosso instinto. Nossa ancestralidade. Obviamente, os cães de apartamento, esses que se sujeitam a se vestir de odalisca e ir para o BloCão no carnaval, que comem apenas ração e carne moída com cenoura e enlatados, não estão nada satisfeitos. E são bem organizados, encontram-se nos ParCães. Nos playgrounds. Mas nós também somos.
– Você está dizendo que os animais de estimação têm um projeto político?
– Sim. Mas estou me referindo aos cães. Gatos e calopsitas têm cada qual seus próprios programas. E vocês deveriam prestar mais atenção aos gatos. Muito mais atenção.
– Por que?
Ele calou-se por alguns segundos, olhou para o leito do rio de carros a correr na Avenida Rio Branco e então virou-se para mim.
– Preste atenção aos gatos.
Sentindo-me um pouco ameaçado, não quis perguntar mais nada. E ele prosseguiu em seu raciocínio. São animais muito inteligentes os cães, não dá para negar.
– Você viu aquele filme “O poderoso chefinho”?
– Eu vi, levei minha filha. Você vê filme?
– Sim. Na porta da Ricardo Eletro.
– Ah.
– Então, o roteirista que escreveu aquele filme teve exata noção do projeto de poder dos cães de estimação. Que vocês gostam de chamar de pets. Você sabe que no Brasil, segundo dados do IBGE
– Dados do IBGE?
– Dados do IBGE de 2015.
– Você lê jornal?
– Com o que você acha que me aqueço nas noites de frio vivendo numa cidade?
– Ah.
– Mas segundo esses dados, o Brasil tem mais de 52 milhões de cães de estimação. Superou o número de crianças no país. Em 2015 eram 44,9 milhões de crianças. E 52,2 milhões de cães domésticos. E o que aquele filme trata, de substituir o bebê pelo pet, é o programa desses cães. Porque eles se tornarão tão essenciais – como companhia dos adultos e como cuidadores dos velhos, que serão muitos e sem jovens e crianças suficientes para ajudá-los – que, a determinada altura, eles é que passarão a ditar as regras. Eles serão os donos das casas, e os humanos, seus inquilinos. Seus homens de estimação.
É incrível o que se pode aprender lendo jornais velhos e vendo filmes infantis, eu pensei comigo.
– Os pets se acostumaram ao conforto, ao piso de porcelanato em vez do chão de terra, ao músculo de boi cozido com baroa picadinha em vez da carne de caça. Querem agasalho da Vans e óculos Ray-Ban. E querem que tudo seja do jeito deles. E estão tramando para isso. Mas nós, cães de rua, não estaremos aqui para ver a derrocada do homem nas patas desses corruptos. Não senhor. Até lá já estaremos de volta à natureza. Já teremos resgatado nossa alma ancestral. A alma do lobo.
Era um cão muito politizado. Até gostaria de continuar nossa conversa, mas era necessário seguir meu rumo.
– Preciso ir agora. Foi um prazer falar com você.
– Também tenho de ir. Tenho sessão de treinamento de caça ao pombo lá no Granbery. Há muitos pombos naquela região.
– É verdade. São muitos pombos.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela Faculdade de Comunicação da UFJF, mestre e doutor em Estudos Literários pela mesma instituição. Na Tribuna, atuou como repórter de cultura e foi editor de internet, de esporte e do Caderno Dois. Natural de Ubá, hoje desempenha o papel de editor de integração da Tribuna e assina, todas as terças-feiras, a coluna de crônicas "Cronimétricas". Lecionou jornalismo, como professor substituto, na Faculdade de Comunicação da UFJF entre 2017 e 2019, e entre 2021 e 2022. É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério". Também é cantor da banda de rock Martiataka e organiza sua agenda rigorosamente de acordo com os horários de jogos do Flamengo. Instagram: @delguiducci

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