Tem dias que a gente acorda assim, meio mesquinho, querendo saber com quem estaria aquela edição bilíngue de poemas do Bukowski. Ou onde foi parar aquele canivete suíço pau-pra-toda-obra que você perdeu na mudança da Vila Caruso para a Barão de Santa Helena por volta de 2003. Ou aquele vinil ao vivo do Barão Vermelho que comprou em uma lojinha que nem era de discos na esquina da casa que você já não sabe mais se chama de sua ou de seus pais – dúvida que alimenta uma certa angústia, daquelas que se sente quando a imagem de uma pessoa querida torna-se borrada em sua memória e não há meios de recordar nitidamente suas feições.
São dias em que a gente se agarra a objetos que não podem mais ser tocados, relíquias-âncoras que nos atraquem a algum sentimento perdido, alguma ilusão de eternidade no constante maremoto dos dias que se sobrepõem como ondas a se engolir umas às outras. A motocicleta azul-velha. O isqueiro da Harley-Davidson. O aparelho de som três em um. Aquele tênis da Redley furado no dedão. A capa laranja de Superman costurada por mãos amorosas. Onde estariam? Socando em outras trilhas, acendendo outros cigarros, embalando saraus, calçando mendigos… desmembrada em uma almofada de retalhos largada sobre um sofá que range na sala de paredes mofadas?
Nesses arroubos de pobreza, procuramos não as coisas táteis, mas aquilo que rememoram e que nunca pôde mesmo ser tocado, mas existiu, ah, como existiu!, e, por não mais existir, resta agora ser meramente emulado dentro da gente, falsificação barata de vida vivida. Demandamos, num desespero silencioso, a restituição de entusiasmos que, efêmeros, não podem mais voltar em sua plenitude. Liberadas para sempre de seus patuás – quais fossem discos de vinil, canivetes, motocicletas -, vagando perdidas em nossas entranhas, essas intuições brilham apenas como relâmpagos em uma noite morta, despertando-nos aos arrancos e sumindo em seguida.
Não ficam.
Mas há que saber o que iluminam.