Outro dia eu lia com alguns estudantes umas crĆ“nicas de Clarice Lispector. Uma delas nos emocionou a todos. Chama-se “Por nĆ£o estarem distraĆdos”. Ć um texto pequeno, destes geniais textos pequenos que reverberam na gente por dias, meses, uma vida. Fala de um amor que acaba entre duas pessoas pelo fato de elas nĆ£o manterem-se distraĆdas o bastante. Pois, como se sabe, e Paulo Leminski registrou em seu aforismo, somente “distraĆdos venceremos”.
Mas como, Paulo, se estamos perdendo? Se hĆ” guerra no outro lado do mundo e fome do outro lado da rua? Nunca fomos tĆ£o distraĆdos quanto agora, no entanto…
Eis o xis da questĆ£o: essa distraĆ§Ć£o nĆ£o Ć© aquela de Clarice e Leminski. Ć outra, pĆ©rfida e ardilosa.
TambĆ©m com meus estudantes (a quem trato por “meus” pela mais pura afeiĆ§Ć£o, alguma vaidade e nenhum sentimento de posse) tenho refletido sobre a distraĆ§Ć£o enquanto uma condiĆ§Ć£o da contemporaneidade. Uma condiĆ§Ć£o da qual nĆ£o podemos escapar enquanto seres hiper-hĆbridos e irremediavelmente conectados. Que nos faz dar nomes prĆ©-estabelecidos ao que nĆ£o existe. A procurar o que nĆ£o estĆ” lĆ”, atĆ© criĆ”-lo na insistĆŖncia de que esteja.
Nossa distraĆ§Ć£o Ć© besta. Bota a gente a procurar o tempo todo. Somos distraĆdos pelo vibrar do telefone, pelas cores dos outdoors, pelos infernais pop ups na tela do computador, pelos carros de som e pelos infinitos barulhinhos de notificaĆ§Ć£o: do banco, do zap, da rede social. E se nada disso nos distrai, nĆ³s mesmos tomamos o celular nas mĆ£os, abrimos aplicativos e procuramos algo que nos entretenha, de modo que nĆ£o nos dediquemos por mais de cinco minutos a uma mesma tarefa. De modo que nĆ£o pensemos. EstilhaƧada nossa capacidade de dar atenĆ§Ć£o profunda ao que quer que seja, nosso cĆ©rebro almeja a distraĆ§Ć£o constante. HipnĆ³tica e alienante, a insidiosa distraĆ§Ć£o planejada pelos titereiros do Vale do SilĆcio.
E, ah, que triste!, essa distraĆ§Ć£o reinante nĆ£o tem nada a ver com aquela que concedeu ao casal de Clarice sua “levĆssima embriaguez”. Aquela distraĆ§Ć£o que faz com que as coisas do mundo percam a gravidade. E que nessa leveza se revele o riso Ć toa, a conversa fiada, o afago desinteressado. A festa nas pequenas coisas, a danƧa no trajeto do quarto Ć cozinha. Guerra, sĆ³ de travesseiro. EntĆ£o no mundo distraĆdo haveria menos canhƵes e mais guarda-sĆ³is, e de tanto nĆ£o procurar, encontrarĆamos.
No mundo distraĆdo