As cores começam a aparecer. No alto, o sol estala atrás dos prédios no céu de setembro. Faz dias não chove e a paisagem não é exatamente brilhante. Há uma fina nuvem de poeira no ar. Tudo é vagamente opaco. Lúcido, mas algo incomum.
À esquerda, toma forma a banca de revistas estampando notícias velhas demais para as três da tarde. As cores das capas dos semanários também são lavadas, sem vida, desinteressantes. Numa pilha à entrada da furna onde se abriga o jornaleiro, um cartaz escrito a mão: “jornal para cachorro”.
Do lado direito, o estacionamento vazio do posto de gasolina, pequeno deserto de asfalto e manchas de óleo. No ponto mais extremo, dois calibradores com suas mangueiras meticulosamente enroladas. Na rua em frente, muitos carros trafegam, quase silenciosos, em suspeita vagareza.
Ao centro, o foco. Na calçada de pedras portuguesas, a mãe empurra um carrinho de supermercado, tendo o filho (5 anos?) agarrado à barra do vestido. Ele caminha atrás, como que arrastado por ela, a mão aferrada ao pano barato, os chinelos gosmentos de terra e suor.
Ela leva envolto à cabeça um lenço branco e usa um vestido preto rajado de mínimos detalhes coloridos. Sua pele não tem a dignidade da pretura: é adiáfana, ruça, ressequida. Uma pele abandonada, desesperançosa, enferrujada pelos efeitos do tempo que não tem para si.
A mulher enferrujada que leva consigo o menino enferrujado empurra um carrinho enferrujado que carrega uma quantidade enorme e inexpugnável de lixo. Não biscoito Passatempo, não azeite Galo, não carne de segunda. O carrinho atulhado de rejeitos. Lixo de primeira necessidade.
A mulher, o menino, o carrinho, o lixo: o foco da fotografia que eu não tirei. Ao fundo, os cartazes erguidos sobre as bombas de gasolina gritam seus preços a quem os possa pagar. E os frentistas, olhares vagos sobre a torrente de carros em marcha-lenta na tarde morrediça, aguardam sua vez.
Tentativa de revelação de uma fotografia não tirada