Melhor que vocĂȘ

Por Wendell Guiducci

O Brasil tem nos dado importantes liçÔes desde o advento dos celulares que filmam. É uma revolução nĂŁo apenas tecnolĂłgica, conectado leitor, pasme!: Ă© tambĂ©m uma revolução sociolĂłgica!

Senão, veja: quem diria que um dispositivo feito para tirar retrato, fazer filmes, gravar voz, jogar joguinho, baixar o Caixa Tem, receber foto de gente nua e até mesmo telefonar seria responsåvel por desvelar a alma do brasileiro!?

É um caso sĂ©rio! Porque a gente gosta de acreditar que a alma do brasileiro Ă© aquela da Fernanda Montenegro em “Central do Brasil”, uma salafrĂĄria espertalhona que, no fundo, bem no fundo, tem um coração de ouro e farĂĄ alguma coisa boa nessa vida. A redenção virĂĄ para o malandro, porque o malandro no fundo Ă© boa praça. O brasileiro Ă© cordial, diriam SĂ©rgio Buarque e JosĂ© SimĂŁo.

Mas agora, celular na mão, todo mundo é um Walter Salles em potencial. E a redenção do malandro bate em disparada feito o Pixote de Babenco.

Ou algum de nĂłs nutriria simpatia, afeto ou cordialidade diante de uma fala como “CidadĂŁo, nĂŁo. Desembargador, com contatos. Melhor que vocĂȘ.”? O roteirista que escreveu essa fala nĂŁo pode esperar que a gente se apaixone por um personagem assim.

Uma fala que, aliĂĄs, nem original Ă©: deriva de outra, ouvida em outro pĂ©ssimo filme de uns dias atrĂĄs, que Ă© mais ou menos assim: “CidadĂŁo, nĂŁo. Engenheiro civil, formado. Melhor que vocĂȘ”.

Apesar da jequice, do plågio, da incapacidade dos personagens de despertar algum tipo de empatia, é preciso reconhecer o valor sociológico das recentes produçÔes smartfÎnicas.

Para os estudos da brasilidade, por exemplo, os filminhos mostram que o brasileiro tem essa tara pelo tĂ­tulo: doutor, desembargador, engenheiro civil formado, melhor que vocĂȘ. E para os estudos das humanidades em geral, fazem cair por terra a profissĂŁo de fĂ© que roga para que todos os homens sejam iguais entre si.

Estimado leitor, nunca foi tĂŁo fĂĄcil reconhecer uns homens como bem piores que outros.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci Ă© jornalista formado pela UFJF. Foi repĂłrter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crĂŽnicas "CronimĂ©tricas". É autor dos livros de minificçÔes "Curto & osso" e "SuĂ­te cemitĂ©rio", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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