Toda vez que leio a pergunta “Quem mandou matar Marielle?” meu cérebro faz um contorcionismo involuntário. Naufraga na leitura a entonação natural, aquela que confere à frase seu sentido mais óbvio, o questionamento sobre quem foi ou quem foram os mandantes do assassinato da vereadora, e emerge outra em seu lugar. Nesta nova leitura, a interrogação vem seguida de reticências invisíveis. A retidão da indagação peremptória, inconteste, inquisidora, esmaece na curva descendente que a sentença desenha. Aqui, gramático leitor, a pergunta dá lugar a uma advertência, talvez um ralho, um pito, um fumo, um “eu te disse”, talvez um “eu bem que avisei”.
Veja que nesse meu inadvertido espasmo literácico o foco não está mais no pronome relativo “quem”, mas na forma infinitiva do verbo “matar”. Não importa mais o agente, mas o ato: não se quer saber quem mandou matar Marielle, quer-se tão somente dar uma agulhada, junto da qual é quase possível ler, após as reticências, com tons de sádico deleite, um “bem feito”, mas a versão cruel daquele “bem feito” que a mãe diz após ver o filho se esborrachar do alto do portão que insiste, apesar de todas as advertências, escalar. E se soubermos ler com ainda mais determinação as letras apagadas ou mesmo aquelas por escrever, talvez possamos encontrar ali um “agora aguenta”. “Quem mandou subir no portão, Lorenzo?… Bem feito! Agora aguenta.”
Perceba, estimado leitor: não é que essa leitura julgue desimportante saber quem mandou matar Marielle. De forma alguma. Não. Antes, essa leitura SABE quem mandou matar. E, sabendo quem são e onde estão, ela se dirige diretamente a eles. Ela quer atormentá-los. Ela paira sobre suas cabeças, observa-os da fresta do guarda-roupa, encosta-se no muro do fim da rua, inalcançável, presente, braços cruzados e sorriso sacana no rosto, orgulhosa, apenas aguardando o desfecho de uma história cujo final ela gosta de pensar que sabe. Ela não questiona as autoridades competentes, como a pergunta mais óbvia – e necessária! – faz. Ela atravessa as possibilidades e as utopias e, saboreando o medo, diz aos mentores da barbárie: “Vocês pensaram que haveria silêncio após os estampidos da metralhadora. Vocês pensaram que se safariam. Agora dormem de olhos abertos no cagaço de serem pegos. Podem até não ser. Mas não terão uma noite de sono, não terão um dia de paz. Bem feito. Agora aguenta. Quem mandou matar Marielle?”.