Carta ao amigo Saldanha

Por Wendell Guiducci

Caro amigo Saldanha
Eu o vi desaprovando outro dia no Twitter as práticas do Spotify. Especificamente, o mecanismo que, uma vez encerrada a audição de determinado álbum, manda o ouvinte automaticamente à “Rádio do artista”. Você se dirigiu ao Spotify escrevendo algo como “não quero suas sugestões”.
Estimado Saldanha, temo que o amigo esteja no ambiente errado. Não o Spotify, particularmente, mas o ambiente da rede mundial de computadores como um todo. Pois absolutamente tudo no ambiente virtual está a serviço da “sugestão”. Baseado nas páginas que visitamos, nas músicas que ouvimos, nas compras que fazemos, a internet desanda a nos oferecer toda sorte de quinquilharias sem que requisitemos sua orientação.
Nem conversar perto de nossos celulares podemos mais, Saldanha. Domingo passado eu falava com uma prima sobre imigração para o Canadá, celular no bolso, e eis que na segunda-feira recebo um anúncio da Inmigración Canadiense em meu email, mesmo sem nunca ter realizado qualquer pesquisa nesse sentido.
Quando assinamos nossa entrada na internet, caro Saldanha, assinamos um contrato com o Diabo. E o Trem Ruim não vive embaixo da terra, sentado num trono de crânios infantis à beira do lago de enxofre. Não. O Coiso tem muitas cabeças e vive na habitação tentacular cujas raízes estão no Vale do Silício e florescem em nossos computadores, nossas TVs, nossos cérebros, enfim.
Se você está lendo esta crônica no site do jornal, na certa foi assombrado por banners e vídeos e anúncios de bancos e imobiliárias, faculdades e concessionárias, hospitais e funerárias, num ataque impiedoso aos sentidos. Por isso sugiro a meus poucos leitores, quando possível, que leiam estas mal-traçadas no papel. Dificilmente alguém levará mais que dois ou três minutos para ler uma crônica minha. Mas que esses dois ou três minutos ao menos sejam de ligeira e inalienável concentração.
Não estaremos, portanto, a salvo da global sugestão, estimado Saldanha. Uma vez imersos no mundo virtual, seremos presas fáceis para a sanha de vender. O algoritmo, amigo, é o Cão Babando.
Mas se quiser ouvir suas músicas sem ser assediado pelo sistema, convido-o ao Bar do Lourival, na rua principal do Distrito de Miragaia, Ubá, Minas Gerais. À esquerda da porta há uma robusta jukebox, um pouco empoeirada, cujo sucesso mais recente é “Whiskey in the jar”, versão do Metallica, lançada em 1998, quando o mundo era mais simples. A ficha custa um real e não há modo de diversão mais autêntico quando se trata de ouvir música em ambiente compartilhado.
Com meu abraço cordial e lembranças ao Glauber Batatinha
Del

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela Faculdade de Comunicação da UFJF, mestre e doutor em Estudos Literários pela mesma instituição. Na Tribuna, atuou como repórter de cultura e foi editor de internet, de esporte e do Caderno Dois. Natural de Ubá, hoje desempenha o papel de editor de integração da Tribuna e assina, todas as terças-feiras, a coluna de crônicas "Cronimétricas". Lecionou jornalismo, como professor substituto, na Faculdade de Comunicação da UFJF entre 2017 e 2019, e entre 2021 e 2022. É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério". Também é cantor da banda de rock Martiataka e organiza sua agenda rigorosamente de acordo com os horários de jogos do Flamengo. Instagram: @delguiducci

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade pelo seu conteúdo é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir postagens que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.



Leia também