O beijo banido

Por Wendell Guiducci

Ai de mim, Secretaria de Saúde, criticar as recomendações para o controle do antissocialíssimo esparramar do coronavírus. Mas se o choro é livre, faço aqui valer meu direito à lamúria.

Pois se vejo a foto de uma famosa no Instagram – que não sei quem é – dizendo que está com o antipático Covid-19, aparece-me de imediato uma tarja mental: “Proibida de beijar”. Ó, tempos difíceis para amantes da beleza!

Meu medo, Secretaria, e osculante leitor, é que, a seguirmos as racionais, necessárias recomendações do Estado, acostumemo-nos doravante a evitar um estalinho fraterno que seja nas bochechas queridas.

O beijo, saibam, é recomendação bíblica. Está lá em Romanos, em Coríntios, em Tessalonicenses, todas cartas de São Paulo apóstolo: “saudai-vos uns aos outros com o beijo santo”. Que, no caso, seria na boca. Em seu livro “Um ou dois beijos: à procura do cumprimento perfeito”, o viajandão diplomata britânico Andy Scott, que cumprimentou gente em mais de 60 países, nos conta que o gesto acabou banido pela Igreja sob o Império Romano, porque o ato foi se configurando um tanto sensual. Não duvido, pois em Roma, há quem diga, até hoje tem sempre alguém querendo meter a língua na sua garganta.

Banido o selinho, foi instituído o hábito de roçar um rosto no outro como cumprimento, aprimorado pelos camponeses como beijos nas faces – depois assimilados pela burguesia -, costume que vigora até hoje. Tem gente que cola o rosto e beija o ar, tem gente que taca uma bitoca e oferece a outra face, tem lugares em que se beija uma, duas, três vezes, em partes do Afeganistão são oito beijinhos, há lugar que se beija homem, há lugar que não se beija mulher, a diversidade de ósculos é de vastidão planetária.

Mas aí vem esse insensível organismo, essa praga que nem célula tem, e coloca na berlinda a (bi)milenar tradição. É o espírito de um tempo: apartar-nos, fazer com que fiquemos cada vez mais isolados, não só em nossas ideias e verdades, mas também fisicamente. Não bastava a melancolia do sexo virtual? Na bolha pós-Covid-19, nem o beijo sobrevive.

Em 2009, no auge da gripe suína, muitas instituições francesas baniram o beijo como forma de evitar um surto. Aqui na Tribuna ontem, sem circular restritiva, a coisa foi espontaneamente similar: cumprimentos de longe, com os cotovelos, com os pés, fazendo graça, com seríssimo desconforto. Estranho mundo. Mas se é isso, é isso, bitoqueiro leitor. Respeitemos (não sem lamúria).

Só espero que, finda a crise imposta por esse repulsivo vírus, esse organismo abjeto que, acelular, sequer tem um reino para chamar de seu (recusado por monera, protista, fungi, animal ou vegetal, deseja que nós também estejamos excluídos de qualquer comunhão), passado esse apuro, lembremos das recomendações de São Paulo e santifiquemos o beijo nosso de cada dia. Amém.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela Faculdade de Comunicação da UFJF, mestre e doutor em Estudos Literários pela mesma instituição. Na Tribuna, atuou como repórter de cultura e foi editor de internet, de esporte e do Caderno Dois. Natural de Ubá, hoje desempenha o papel de editor de integração da Tribuna e assina, todas as terças-feiras, a coluna de crônicas "Cronimétricas". Lecionou jornalismo, como professor substituto, na Faculdade de Comunicação da UFJF entre 2017 e 2019, e entre 2021 e 2022. É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério". Também é cantor da banda de rock Martiataka e organiza sua agenda rigorosamente de acordo com os horários de jogos do Flamengo. Instagram: @delguiducci

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