Olho as anotações no celular em busca de um tema. “Ser russo é ser visto pelos olhos de um boi”, rascunhei em algum momento da noite de sexta. Acho que não é esse o caminho hoje. Então pego o carro e saio atrás de assunto. No estéreo do velho Fiat toca “Why must you always dress in black”, de Ben Harper, que me embaralha devaneios cromáticos por demais intrincados. Não servirá ao papel do jornal de terça.
Olho para fora da janela. Entre Tabuleiro e Piau, um restaurante à margem do asfalto está apinhado de gente celebrando o Dia dos Pais. Poucos quilômetros depois, o mais órfão dos muquifos de beira de estrada amarga um domingo ermo. Moscas e toalhas tristes fitam bólidos de lata. Vêm-me à cabeça os “Versos íntimos” de Augusto dos Anjos, que recito a plenos pulmões na solidão sonora do carro. Nem a poesia angelina, nem bares vestidos de poeira asfáltica me salvarão um tema?
Do lado direito da rodovia, definham ipês. Na magreleza dos galhos, penduram-se bravas flores amarelas que anunciam o alargar dos dias, tal qual algodoeiros inflamados de sóis madrugadores. Quanta prosa e quanto verso para os ipês, amarelos, roxos, rosas, brancos? Eu mesmo já dediquei uns garranchos à relampejante árvore que fulgura nos invernos juiz-foranos. De novo não.
A viagem a findar e assunto algum surge que eu possa desenvolver, um fio solto com que eu possa tramar umas fileiras minimamente aceitáveis de palavras. Tudo se fecha na mais hermética e insondável dureza. Dirigindo contra o tempo, penso que se ao poeta é dado montar tocaia para a inspiração, para o cronista não cabe indulto contra o prazo. Olho vazio sobre o texto interminado, vai com o que tem.
Viagem em busca de um tema