Gilsinho Pavão, o ignorante orgulhoso

Por Wendell Guiducci

– Não sei não quero saber tenho raiva de quem sabe -, brada Gilsinho Pavão ao volante da Hilux, atropelando cachorros ao som de Gusttavo Lima.
Gilsinho é exemplar de um espécime digno de nossa atenção, em franca expansão na vida contemporânea: o ignorante orgulhoso de sua incultura.
– Sei mesmo não e se eu não sei é porque não vale nada –, e soca uma vinheta do Cuiabano Locutor no volume 30 no estéreo da picape.
Saber não ocupa espaço, dizia minha avó e a sua também, curioso leitor, mas para Gilsinho, cuja face pensante do cérebro não mede mais que o diâmetro de meia lentilha desidratada, o HD já está abarrotado. Cheio de si e de lixo digital que recebe diuturnamente no zap, Gilsinho acredita mesmo que esgotou o que há pra saber.
– Não devo nada pra ninguém, pago minhas contas e se você quiser eu pago as suas também! -, berra e dá uma baforada no vape sabor Halls de melancia.
Gilsinho não gosta de assuntos que não domina nem de músicas com mais de dois minutos. Não gosta de palavras que nunca ouviu nem de livros sem figuras. Aliás, não gosta de livros. E não gosta de filme legendado nem de filme sem tiro.
– Pelo menos uma perseguição de carro, uai!
Se Gilsinho acha que óleo de motor faz nascer cabelo no peito, não adianta tentar explicar que não há na literatura médica uma linha sequer que corrobore tal desatino: melhor deixá-lo lambuzar a pança com Selenia 15W-40.
É que Gilsinho acha que pensar sobre as coisas que não entende muito bem dá muito trabalho. Prefere ganhar a discussão no grito e lançar mão da máxima “é assim que eu penso e ponto final”. Gilsinho, aliás, adora um ponto final.
É daqueles que, na incapacidade de elaborar, prefere comprar qualquer solução.
– Dinheiro não traz felicidade: manda buscar, rárárá!
De tanto repetir chavões e ignorar qualquer oportunidade de aprendizado – uma nova língua, uma nova habilidade técnica, uma nova receita de macarrão –, Gilsinho vai minguando seu vocabulário e, com ele, a possibilidade de expressar aquilo que, mesmo rudimentarmente, pensa.
Isso tem dificultado em considerável medida a forma de Gilsinho se relacionar com o mundo, de modos que ele vê cada vez mais reduzido seu universo de interlocutores, circunscrito a néscios de mesma envergadura ou entes inanimados.
Ontem mesmo foi visto batendo boca com o estepe da Hilux. Não se tem notícia de que a picape o tenha respondido até o momento.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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