Os aldeões de Paraty

Por Tribuna

É impressionante como as pedras assentadas séculos atrás por escravos mais fortes que qualquer crossfiteiro que você conheça suportam o peso do mundaréu de gente trotando pelas ruas dessa velha cidade que não afunda. Durante cinco dias, de quarta-feira ao último domingo, celebrou-se a Festa Literária Internacional de Paraty e as paredes dos casarões testemunharam esse ir e vir frenético de tudo que é sotaque e cor – embora tenham predominado os bem brancos. Enjoados, os caibros estalavam e rangiam e gemiam baixinho demais para serem ouvidos pela turba cá embaixo.

Nas mesas-redondas e conferências, ao contrário das ruas apinhadas de gente, predominaram os bem pretos. Este ano as minorias foram maioria em boa parte dos eventos, seja nos debates oficiais da Flip, seja nos encontros promovidos nas “casas”, nome conferido aos casarões alugados por instituições públicas e privadas como Folha de São Paulo, Globo, Instituto Moreira Salles, Iphan e outras que promovem discussões sobre suas próprias pautas, com seus próprios convidados.

Na cacofonia das vielas, o choro da flauta e das crianças birrentas, o ritmo do slam das mentes periféricas, o canto dos índios, o estourar de pipoca, a súplica de homens desgraçados pela poesia pelejando para vender um exemplar que seja de qualquer um de seus livros para salvar a janta, atores que se esgoelam, um homem de terno e gravata que toca o acordeom mais triste jamais ouvido em todo o continente americano.

Atravessando a ponte estreita a partir da Praça da Matriz, coração da Flip, avermelha-se a face mais alternativa da feira, presumíveis colhões da Flip, com sebos móveis, espetinhos de linguiça a dez reais, cerveja latão, hippies vendendo suas quinquilharias feitas artesanalmente, industrialmente iguais umas às outras, tudo orbitando a grande vedete do underground literário nesses cinco dias: o barco pirata da Flipei, Festa Literária Internacional das Editoras Independentes.

Ali falariam o próprio olho do furacão da República nesses dias de vazante braba, Glenn Greenwald, e outros malquistos pelos defensores do governo. As luzes ao longo do lado esquerdo do canal, repleto de traineiras quebradiças e veleiros adormecidos, estão todas apagadas no entorno do barco pirata. Há lâmpadas acesas por toda Paraty, menos ali. Caminhar sem pisar o dedo – da mão ou do pé – de alguém é impossível. A textura da escuridão é de gente que se espalha pelo gramado, gente sentada sob as tendas montadas em frente à embarcação, gente de pé até onde a vista alcança no breu interrompido aqui e ali somente pela luz quente e engordurada das carroças de churrasquinho.

Do lado oposto do canal, no Centro Histórico, onde os pratos de risoto parecem tabelados a noventa e oito reais nos cardápios que pendem das janelas dos restaurantes, um esmirrado grupo de homens brancos se reúne empunhando bandeiras verdes e amarelas em hastes muito longas. Na esquina da praça, uma senhora bastante velha, empertigada atrás de seus óculos de aro de tartaruga, o pescoço murcho envolto em um lenço fino com as cores do Brasil, faz as vezes de sentinela. Em seguida, marcham todos – os homens, a velha -, emparedados por uma vaia retumbante que vem de ambas as margens do rio. Colocam-se na Rua Josefina Costa, na altura do barco pirata onde fala Greenwald, à direita do canal, agitando suas bandeiras, aldeões à caça de monstros de antigos filmes de horror. Atiram rojões para o alto. Cantam o Hino Nacional Brasileiro em ritmo de funk carioca.

Ao centro, o Rio Perequê-Açu faz-se de morto e segue sua toada cinzenta exatamente no rumo que deseja.

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