“Ser é perceber e ser percebido.” A frase do filósofo irlandês George Berkeley foi cunhada no século XVIII, mas se aninha facilmente entre os algorítmicos dias atuais. Nesses tempos em que passamos horas e mais horas imersos no mundo hiperconectado das plataformas de redes sociais, quem não está lá, postando e clicando e tagarelando, é como se não existisse. E se não há mais distinção entre mundo on-line e mundo off-line, é preciso cuidar para não matarmos quem não morreu e, pelo contrário, está muito bem e vivo.
Tenho essa amiga que vive em um sítio. Seu ramo de atuação permite que ela trabalhe de casa e venha à cidade somente para o estritamente necessário – fazer compras, ir ao médico, levar a filha à escola, assistir a um show, a um espetáculo de teatro. E embora passe boa parte de seu dia desenvolvendo atividades em ambiente virtual, ela não tem perfis em redes sociais e tampouco participa de grupos de WhatsApp. Minha amiga inexiste para o mundo “on-life”, mas eu tenho provas de que ela está vivíssima.
Às vezes eu a encontro. Ela vem à minha casa com o marido e bebemos vinho, jogamos cartas e conversamos sobre música e política e pragas que não deixam a grama crescer. Às vezes eu também vou até o sítio dela e tomamos um bom café com broa – que ela não faz, mas eu levo. Aproveito para trazer para casa alguns ovos caipiras que ela colhe todos os dias do galinheiro. São tantos ovos que ela e o marido não dão conta de comer, assim como a couve e a cebolinha que crescem ao lado do canil, então distribuem entre os vizinhos. Os vizinhos sabem que ela existe.
E os cachorros da minha amiga também sabem que ela existe. Correm para abraçá-la quando chega – cachorros abraçam pulando -, agradecem pelo cafuné e correm de volta para o mato atrás de um marreco ou uma borboleta. Não esperam que ela os parabenize no Instagram no dia do aniversário nem se preocupam em saber a opinião dela sobre a última edição do Big Brother. Amam a existência dela, pura e simplesmente.
Eu invejo tanto a inexistência da minha amiga. Porque nessa inexistência existe uma admirável energia vital, de rebeldia silenciosa e delicada resistência. Existir, para ela, é ler seus livros estirada em uma toalha no quintal, ir ao cinema, estar com sua família, com seus cães, com seus poucos amigos, tomar seu pilequinho numa sexta à noite e, no abraço afetuoso de despedida, sem esforço algum, lembrar a gente que está assim, inexistindo muito bem e viva.
Os inexistentes estão vivos