Pelo direito de buscar a bola

Por Wendell Guiducci

Não é em todo país que os políticos dedicam seus mandatos a criar caos, acobertar esquema de rachadinha ou a fazer dos filhos embaixadores, por mais ineptos que sejam os meninos. Em algumas democracias, os representantes do povo se preocupam de fato com pautas que digam respeito à população, e não a suas famílias. Vide o caso da Bélgica, esse belo país europeu, bom de cerveja e chocolate, onde se fala o mais belo dos dialetos: o flamengo, até morrer. Na Bélgica, caro leitor, as instituições estão funcionando e muito bem. Senão vejamos a lei que lá vigora desde 1º de setembro: doravante, todo cidadão goza do direito de entrar no quintal do vizinho para buscar sua bola.
Que exemplo de civilidade, que demonstração de humanismo! Pois todo brasileiro sabe que chutar a bola no quintal alheio é condição sine qua non para que se ateste: sim, eu vivi a vida! Não há infância sem bola no vizinho. E sabemos todos que há vizinhos e vizinhos. Na minha meninice na Rua da Harmonia, determinados muros não se pulava. Porque tinha cachorro bravo ou porque tinha velha brava. Algumas bolas jamais voltaram. Outras, foram-nos devolvidas retalhadas a faca.
Isso não mais acontecerá, pelo menos lá na Bélgica. Já é um alento para aqueles que ainda nutrem alguma esperança na humanidade, em particular a humanidade brasileira. A partir de agora, se a bola cair do lado de lá do muro, o belguinha, a belguinha boleirinha vão poder buscar sem medo de cara feia – que tem muito na Bélgica, uma cara feia assim meio rosada -, porque o vizinho está obrigado por lei a devolver. Se ele não estiver em casa, tanto melhor: a criançada pode entrar e pegar a pelota e voltar a brincar de Lukaku.
Em entrevista ao jornal britânico “The Guardian”, o professor Vincent Sagaert, que participou da elaboração da lei, avisou que não vai ter oba-oba, que belga não é disso, e botou limites: “Você tem que tocar a campainha do vizinho e perguntar primeiro. Mas se ele recusar ou não estiver em casa, você pode ir rapidinho ao quintal buscar a bola”, esclareceu. Em tom de advertência, foi além: “Mas só para procurar a sua bola ou animal, não para pegar outras coisas, porque isso ainda se chama roubo”. Que bom que a lei deixa claro. Belga é mesmo um bicho danado.
Ah, e tem o animal! No tocante a essa questão aí, a lei prevê que você pode também penetrar o terreiro dos habitantes contíguos para buscar seu cachorro, seu gato, sua tartaruga, sua calopsita fujona. As instituições belgas não são apenas justas, são também muito sensíveis às causas animais, como se vê. O que me inspira a deixar uma não requisitada sugestão às nobilíssimas vereadoras e caros vereadores: um projeto de lei que permita a nossas crianças buscar a bola depois de uma mal-fadada cabeçada, de uma cobrança de falta descalibrada, uma bicicleta infeliz, sem prejuízo da sua integridade física ou da própria gorduchinha. E iria além, já que o papel aceita tudo: por que não autorizar também que toda a gente possa buscar no vizinho uma xícara de açúcar quando for pega de surpresa diante do findar da doce provisão?

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela Faculdade de Comunicação da UFJF, mestre e doutor em Estudos Literários pela mesma instituição. Na Tribuna, atuou como repórter de cultura e foi editor de internet, de esporte e do Caderno Dois. Natural de Ubá, hoje desempenha o papel de editor de integração da Tribuna e assina, todas as terças-feiras, a coluna de crônicas "Cronimétricas". Lecionou jornalismo, como professor substituto, na Faculdade de Comunicação da UFJF entre 2017 e 2019, e entre 2021 e 2022. É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério". Também é cantor da banda de rock Martiataka e organiza sua agenda rigorosamente de acordo com os horários de jogos do Flamengo. Instagram: @delguiducci

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