Cochilo

Por Wendell Guiducci

Há certas pautas comportamentais que são recorrentes no jornalismo, especialmente agora, em tempos de metrificação, de relatórios analíticos de desempenho e de metas de “page views” a cumprir. Não se engane, hiperconectado leitor: quando uma pauta fria começa a pipocar simultaneamente em diversos portais, é porque o Google avisou que aquele assunto está “performando” bem. Portanto, se um editor publicá-lo, mesmo que mande o ChatGPT, o Gemini ou qualquer outra inteligência artificial generativa escrever qualquer bobagem requentada sobre o assunto em voga, tende a ter um ótimo fluxo de usuários para o seu site.
É o que aconteceu na semana passada com o tema “cochilo” ou “soneca”. Deu no jornal “O Globo”, deu n’“O Tempo” e em outros veículos, mas se você procurar direitinho, vai achar coisa similar publicada em 2024, em 2023 e daí por diante. É pauta requentada, como dizemos. Não me tenha por rabugento, tenaz leitor destas mal-traçadas. Eu, como aguerrido defensor do ócio – e da máxima “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço” -, só tenho a comemorar quando uma pauta como essa entra nos “trending topics”. Acho mais é que a gente tem de ficar à toa mesmo, tirar uma soneca depois do almoço ou quando nos der na telha. Não por esgotamento, como é o caso dos serventes de pedreiros estirados nas calçadas do Brasil após amassarem aquelas marmitas arrumadas, derrotados pela jornada bruta e tendo ainda pela frente meio dia de fatigante labor na obra, mas antes por princípio, por uma filosofia da inação.
Os espanhóis entendem muito desse riscado. Dificilmente você verá pessoas parando a vida para cochilar em horário comercial em Madri ou Barcelona, metrópoles já sugadas pelo vórtice impiedoso da pasteurização global do consumo. Mas nas cidades menores, a famosa “siesta”, o hábito de tirar um cochilo depois do almoço, é respeitada com rigor. De tudo que vi em Salamanca uns anos atrás, além da imponência arenosa das catedrais, do sol dourando os paredões da Universidade e do viço barroco da Plaza Mayor, nada me impressionou tanto quanto a calmaria pós-almoço. Não se achava uma birosca para comprar uma garrafa d’água no calor de quase 40 graus. Os comércios e museus tinham as portas fechadas, e atrás delas os cidadãos dormiam o sono dos sábios. Também nas praças as pessoas se esparramavam pelos bancos e gramados. Eu mesmo não pude resistir e larguei minha carcaça a repousar sob a sombra de uma enorme sequoia na Plaza de Anaya por uma boa meia hora.
Mas voltando às “reportagens”, evocando uma e outra pesquisa de Harvard, Berkeley ou Michigan, elas tratam dos vários benefícios do cochilo para o ser humano: melhora da capacidade cognitiva, da memória e da concentração, redução da pressão arterial aliada a proveitos cárdio e cerebrovasculares. Eu, que amo a ciência quase tanto quanto amo o ócio, creio que todas essas pesquisas são muito válidas, mas não podemos também ignorar o valor da experiência: qualquer um que tenha tirado uma pestana de 15 minutos depois de bater um arroz com feijão pode testemunhar em favor dos benefícios gerais da soneca.
Mas nenhum de nós chegará aos pés do motorista Vinicius Estreich. No fim do mês passado, uma árvore caiu sobre o carro dele, estacionado em serviço em uma rua da cidade de Cascavel, no Oeste do Paraná. Vinicius, porém, não sofreu um arranhão. O episódio o tornou prova viva dos benefícios da “siesta”. Se ele estivesse com o banco ereto, a referida árvore teria-lhe esmigalhado o crânio. Porém, como Vinicius havia arriado o encosto para tirar uma soneca, a posição de relaxamento o salvou do tronco homicida. Com todo o respeito aos cientistas de Harvard, resta aí comprovado de forma inequívoca o valor de um bom cochilo. E também a cabal validação da constatação do poeta paranaense Paulo Leminski, que vislumbrou: “distraídos venceremos”.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka.Instagram: @delguiducci

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