Aproxima-se de mim pelo flanco, um tanto sorrateiramente, um dos três leitores assíduos desta coluna.
– Anda sumido do jornal, hein, rapaz -, brada ao pé do ouvido, colocando em sério risco o vidro de azeitonas que trago em mãos.
– Opa. Pois é, férias, né? -, justifico, recompondo-me do susto e trazendo as azeitonas (com caroço) para perto do peito. Sãs e salvas.
– Uai, mas escritor não pode gozar férias – goza ele, a fila do supermercado mais parada que a economia brasileira.
– Tô pra concordar com você. Afinal, que direito temos?
– Rararararará! Tô brincando com você, rapaz! Você escreve muito, né?
– Ah, obrig
– Digo, em quantidade. Escrever toda semana, ter ideia toda semana, não deve ser fácil.
Olho bem para ele. Olho para a fila. Paradinha. E emendo:
– Não é tão difícil. A gente se inspira numas coisas do cotidiano, inventa outras, plagia…
– Plagia???
– Esta crônica, por exemplo. Plágio de um artigo de Hemingway de uns cem anos atrás.
– Cem… peraí. Como “esta crônica”?
– Você está na minha crônica.
– Estou?
– Está. Enquanto a gente conversa, eu já vou escrevendo a crônica na minha cabeça.
– Mentira.
– Verdade. Ou quase.
– Mas olha só que interessante…
– Não é? E vou te contar mais: nem sempre sou eu que escrevo.
– Não?!
Esbugalham-se os olhos do interlocutor.
– Não. Porque às vezes estou ocupado escrevendo coisas para que outras pessoas assinem. Ghost writing, já ouviu falar? Escritor fantasma. Eu escrevo e outra pessoa leva o crédito. Paga melhor que escrever crônica. Já escrevi roteiro de novela, livro de poema, romance… ganhei até prêmio internacional. Quer dizer, a outra pessoa ganhou, eu só ganhei o combinado em contrato.
Agora ele está instigado.
– Quê isso… Que livro foi? Eu conheço? Será que eu já li?
– Não posso contar. Contrato. Sabe como é.
– Entendo. Uai… mas se não é você quem escreve sempre as crônicas… quem escreve pra você?
A curiosidade nos olhos dele é genuína. Quase comovente. Não posso decepcioná-lo ali sob a luz fria do supermercado mais paralisado do Cascatinha.
– A minha filha.
– Ora, veja…
– Claro, nem sempre a coisa sai muito boa, ela ainda é muito jovem, então eu a deixo trancada em um quartinho que eu tenho nos fundos da casa, onde fica a comida do cachorro e as ferramentas. E aí ela fica escrevendo lá, sentada em cima de um saco de Purina Dog Chow, sem celular, sem internet, sem comida e sem água, até sair alguma coisa que preste. Digo, que preste pra jornal.
Agora ele parece um pouco chocado. Mas trato de tranquilizá-lo.
– Ah, mas ela já é crescida, bobo. Tem 13 anos. Nem reclama mais. E que fique claro, só boto pra escrever depois que ela termina o dever de casa. Senão, que tipo de pai você pensaria que eu sou?
Por um microinstante, um silêncio lunar abate-se sobre a Avenida Doutor Paulo Japiassu Coelho. Antes que a caixa registradora quebre o silêncio e anuncie minha vez, meu leitor se pronuncia:
– Esqueci de comprar pão.
– Eu guardo seu lugar.
– Precisa não, bobo.
E vai-se entre as gôndolas apinhadas de gordura vegetal hidrogenada, espessantes, corantes e acidulantes, sem no entanto escapar do meu aviso/convite:
– Ó, te espero na coluna de terça, hein!