Carros de boi e máquinas de escrever

Por Wendell Guiducci

Há, na entrada da cidade de Tocantins, às margens da BR-265, na Zona da Mata mineira, uma fileira de carros de boi à venda. Parecem carros usados, que há muito perderam a utilidade para a função que originalmente foram criados. Se serviram algum dia para carregar capim, caixas de pepinos ou latas de leite, não sobraram vestígios visíveis. Estão lá, alinhados no vasto acostamento, suas cicatrizes escondidas pela camada de poeira que o asfalto engrossa.

– Quem compra um trem desses hoje em dia? -, questiona um companheiro de viagem.

Não sei. Fazendeiros que queiram preservar a memória de um tempo que nunca mais voltará? Donos de sítios? De granjas? De restaurantes? Gente que queira conferir um aspecto rural a determinado ambiente em que (con)vive. Em quaisquer das simulações, a função original, utilitária, desloca-se para uma outra, decorativa.

Aquelas rodas seguramente não irão mais cantar e, se o fizerem, será como o cisne-branco que, reza a lenda, fica mudo ao longo de toda a vida e, no momento de sua morte, entoa uma única e magnífica melodia.

Quem compra um carro de boi estacionado às margens da BR-265 é como quem compra uma máquina de escrever na feira livre da Avenida Brasil. Ressente-se de um passado que não voltará mais. Quer restaurar a aura perdida de um tempo que, para ele, foi bom.

Pois ninguém mais precisa da destreza do carreiro ou do datilógrafo. É inútil a arte de parear os bois na canga e manusear a guiada, como é inútil a arte de escrever a máquina, a sinfonia das teclas batendo, o sino, a alavanca do carrilho compondo música.

Passaram, o carro de boi e a máquina de escrever, do funcional ao decorativo. Logo, do útil ao inútil, no sentido prático e cotidiano da vida. E daí, quem sabe, a objeto de arte, uma vez que ser inútil é prerrogativa da arte.

– Sei lá quem compra um trem desses hoje -, respondo por fim. Mas aí já estamos quilômetros à frente, rodando em meu ainda útil automóvel Renault, cujas pastilhas de freio, temo, estejam em vias de acabar. É recomendável uma revisão.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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