Os Ășltimos leitores

Por Wendell Guiducci

Estamos no futuro e o papel não existe mais. Uma nova era da oralidade se estabeleceu e a leitura é uma excentricidade, uma estranha recreação preservada por poucos. Bibliotecas converteram-se em museus. Livros são artefatos remotos.
Jornais e revistas e gibis datados do sĂ©culo XXI sĂŁo exibidos incrustados em imensas paredes de vidro. Os Ășltimos impressos. RelĂ­quias para serem vistas de longe, apenas pela capa, sinĂŽnimos de uma erudição que a quase ninguĂ©m interessa. “NĂŁo toque.”
A informação agora é toda audiovisual. As bisnetas de Alexas e Siris e Samanthas, perfeitas vozes incorpóreas, nos leem contos e romances, notícias e estudos, receituårios e oraçÔes. Nossos recados são transmitidos por voz e nem nossos nomes assinamos mais: a retina é a nova firma.
Letras hologrĂĄficas passam diante dos olhos dos Ășltimos leitores, as cabeças enfiadas em capacetes de realidade virtual. As frases multicores vĂȘm acompanhadas de estĂ­mulos sensoriais sonoros, variando a tonalidade e o ritmo de acordo com o movimento do globo ocular.
NĂŁo saberĂŁo, os Ășltimos leitores, o que Ă© sentar na praia com um volume barato de Rubem Fonseca, as folhas arranhando de areia e levemente umedecidas pelos dedos rugosos de mar. Folhear um tabloide sensacionalista no botequim, sĂł saberĂŁo de ler numa crĂŽnica digital de Xico SĂĄ. Viver, nĂŁo viverĂŁo.
Apartados do mundo em sua experiĂȘncia digital, os Ășltimos leitores, os obstinados Ășltimos leitores lerĂŁo sobre a gente tarada em cheirar livro novo. Sobre revisteiros em consultĂłrios mĂ©dicos. Sobre a tinta que os jornais recĂ©m-saĂ­dos da grĂĄfica soltavam nos dedos. Sobre a alegria de entrar num sebo e escalar com os olhos montanhas de volumes antigos que sobem atĂ© o teto, as lombadas se desfazendo em amarelos e beges e tons ferruginosos.
E se perguntarĂŁo qual deveria ser a sensação de ter em mĂŁos a concretude daquilo que, hoje, sĂł lhes Ă© soprado etereamente por robĂŽs e nanochips. E entenderĂŁo entĂŁo, os Ășltimos leitores, que nem sĂł da visĂŁo se fazia a leitura.

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci Ă© jornalista formado pela UFJF. Foi repĂłrter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crĂŽnicas "CronimĂ©tricas". É autor dos livros de minificçÔes "Curto & osso" e "SuĂ­te cemitĂ©rio", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

A Tribuna de Minas nĂŁo se responsabiliza por este conteĂșdo e pelas informaçÔes sobre os produtos/serviços promovidos nesta publicação.

Os comentĂĄrios nĂŁo representam a opiniĂŁo do jornal; a responsabilidade pelo seu conteĂșdo Ă© exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir postagens que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injĂșrias e agressĂ”es a terceiros. Mensagens de conteĂșdo homofĂłbico, racista, xenofĂłbico e que propaguem discursos de Ăłdio e/ou informaçÔes falsas tambĂ©m nĂŁo serĂŁo toleradas. A infração reiterada da polĂ­tica de comunicação da Tribuna levarĂĄ Ă  exclusĂŁo permanente do responsĂĄvel pelos comentĂĄrios.



Leia também