Eu estava parado no tráfego da ponte do Manoel Honório, suspenso sobre as águas turvas do rio. O motor do Fiat ronronava entediado no inescapável pare-e-siga da vida urbana. No rádio, Robert Finley cantava um soul melancólico. E eu, como um qualquer que sou, zumbizava inerte com minha cara enfiada na tela do celular. Não sei o que me tirou do transe, se algum balé de mendigos, algum cachorro à janela de um automóvel vizinho, mas o fato é que tirei meus olhos hipnotizados da infinita rolagem anestésica e os lancei para fora do carro. À direita, o sol se punha laranja e purpúreo sobre o leito do Paraibuna.
Por um instante, me senti envergonhado de mim mesmo. Envergonhado de todas as visões que tenho deixado escapar. Quantos pores do sol? Quantos pipoqueiros malabaristas? Quantas moças com flores em cabeleiras de fogo? Quantos policiais, skatistas, freiras, metalúrgicos e suas histórias possíveis? Quanta vida real deixei passar enquanto entregava meu cérebro ao lento derretimento cognitivo com que nos brindam as redes sociais, o fluxo desnecessário de hiperinformação, o excessivo tempo de tela? Nada daquilo será recuperado. Tudo que deixei passar enquanto me drogava com tecnoentorpecentes, perdido para sempre.
Antes que eu engatasse a primeira e arrancasse para fora da minha própria desonra, recordei uma crônica de Clarice. Uma minicrônica. Lembro que, paradoxalmente, no imenso livro de 700 páginas que se impõe em um nicho da estante da sala, a crônica se estende por não mais que cinco linhas. Nela, Miss Lispector fala sobre uma rua que viu, “uma coisa” que viu às dez horas da noite enquanto rolava de táxi pela Praça Tiradentes e que nunca mais esqueceria. Aquela rua não descrita, aquela rua que “germinou” Clarice Lispector, está ali, eternizada na minha estante e em tantas outras estantes, desvelada, ainda que insondável, a cada nova leitura. A eternidade se fez num rápido olhar pra fora daquele táxi que corria pela noite carioca.
Que ruas vazias eternizaremos, caro leitor, eu e você, escritor ou engenheiro, cronista ou cozinheira, se não nos permitimos mais olhar para fora da janela de nossas prisões virtuais? Se não levantamos nossas cabeças, o pescoço envergado, o queixo colado ao peito, mergulhados na irrealidade da vida alheia, na torrente de desejos de consumo pré-fabricados? A isso estamos reduzidos? Autômatos incapazes de ver poesia em um tronco de jambeiro, no Homem-Aranha do semáforo, no sol irisando fachadas vítreas? Fuças enterradas na palma iluminada da mão, vamos pouco a pouco definhando rumo à grande e derradeira letargia. Assim não veremos, não leremos, não seremos nunca mais Clarice.
A rua de Clarice