Pode ser que seu time tenha sido derrotado ontem à noite. Pior, talvez tenha sido goleado pelo seu pior rival. Pode ser que o café lhe apresente um sabor queimado e que o pão na chapa reste demasiado gorduroso. Que a moça ao seu lado no balcão da padaria seja espaçosa e lhe esbarre o cotovelo largo enquanto você leva a xícara ao beiço e eis a bagunça feita: mancha de café na camisa branquinha e bem passada. Mas se você não tiver que atravessar a BR-040 de margem a margem na altura de Contagem com um bebê no colo em uma manhã abafada e cinza de terça-feira.
Pode ser que você nunca tenha trabalhado com aquilo para que se formou. Talvez você nem tenha se formado naquilo que gostaria. Ou que nunca tenha se graduado em qualquer faculdade que seja, deixando aquele sonho de ser doutora, engenheiro, piloto de nave espacial para a próxima encarnação. Mas se você não tiver que atravessar a BR-040 de margem a margem com um bebê no colo em uma manhã abafada e cinza de terça-feira, o cabelo impecavelmente arrumado, uma fralda branca a proteger o rostinho inocente do bafo de fuligem de caminhões assassinos.
Pode ser que você não esteja lá muito feliz no seu namoro de dez anos. Que não ande dormindo muito bem. Que o cheque especial esteja estourado e que a quitação do apartamento lhe pareça por demais longínqua. Mas se você não tiver que atravessar a BR-040 de margem a margem com um bebê no colo em uma manhã abafada e cinza de terça-feira, o cabelo impecavelmente arrumado, uma fralda branca a proteger o rostinho inocente do bafo de fuligem de caminhões assassinos, atravessando o matagal na vala que divide as pistas sul e norte.
Pode ser que você esteja lutando contra uma dor de dente. Contra um refluxo que teima em persistir apesar das caixas e mais caixas de pantoprazol. Contra uma vontade tremenda de jogar tudo pro alto e ir ser empregada em uma vendinha de secos e molhados em Serra da Saudade. Mas se você não tiver que atravessar a BR-040 de margem a margem com um bebê no colo em uma manhã abafada e cinza de terça-feira, o cabelo impecavelmente arrumado, uma fralda branca a proteger o rostinho inocente do bafo de fuligem de caminhões assassinos, atravessando o matagal na vala que divide as pistas sul e norte com a dignidade de quem acredita que do lado de lá da torrente de motores há alguma esperança, sua vida talvez não esteja assim tão ruim.