Os matáveis

Por Wendell Guiducci

Evaldo Rosa tinha 51 anos e era músico. Seu cavaco foi silenciado por uma rajada de tiros de fuzil 7.62 durante uma ação do Exército Brasileiro. Um tiro basta para matar um homem, mas ele levou nove. A viúva ainda fala sozinha: conversa com o marido morto todos os dias.

Ágatha Félix tinha 8 anos e queria ser bailarina. Seus passos já não são: uma bala de fuzil cessou sua evolução durante uma ação de policiais militares. O projétil não restou inteiro, nem o fígado, nem o rim, nem vasos do abdômen. Ia para casa com a mãe, mas nunca chegou.

João Pedro Mattos Pinto tinha 14 anos e queria ser advogado. Seus planos foram interrompidos por uma bala de fuzil 5.56 durante uma ação da Polícia Civil. Morreu de tiro covarde, pelas costas. Sua última mensagem para a mãe foi um zap: “calma”.

“Calma.”

Calma é o que o Brasil mais tem diante de uma política de segurança de estado descaradamente discriminatória. Evaldo, Ágatha e João Pedro eram negros e, portanto, invisíveis. Suas mortes não nos causam revolta para além de tweets nervosos e postagens “xatiadas” no conforto de outras redes. Por eles, não iremos às ruas. Não atearemos fogo a bandeiras ou palácios.

Evaldo, Ágatha e João Pedro nasceram na categoria de indivíduos matáveis, segundo a lógica de um sistema arquitetado por homens brancos que pesam negros em arroba, veneram torturadores, recomendam “mirar na cabecinha” e anseiam por um Guantánamo tupiniquim. Uma lógica que, letargicamente, aceitamos.

Nos Estados Unidos, ardem hoje protestos pela morte de um homem negro, George Floyd, por um policial branco. Aqui matam-se George Floyds aos montes e permanecemos indiferentes, paralisados, indolentes, apáticos. Assim, espíritos defuntos, confundindo pacifismo com inércia, autorizamos novas matanças.

O caro leitor há de permitir-me a fabulação: se buscássemos justiça para cada George Floyd brasileiro com a mesma ferocidade que hoje fazem os norte-americanos, como se importássemos atitude do estrangeiro, haveria gasolina que chegasse para alimentar a fogueira monumental ou teríamos de importá-la também?

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci

Wendell Guiducci é jornalista formado pela UFJF. Foi repórter e editor da Tribuna entre os anos 2000 e 2024. Hoje assina, como colaborador, a coluna de crônicas "Cronimétricas". É autor dos livros de minificções "Curto & osso" e "Suíte cemitério", e cantor da banda de rock Martiataka. Instagram: @delguiducci

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