Órfãos na Terceira Idade

Aprendo que com a idade nova, de todo ano, existe a possibilidade de nos tornarmos mais humanos, mais simples e mais equilibrados

Por Jose Anisio Pitico

A travessia do tempo pelos dias afora não garante a satisfação de nossas faltas e carências afetivas e amorosas, que são muitas. Somos seres de falta. Ou da falta. Sempre faltará algo. Precisamos aprender a conviver com a frustração, com as perdas, com as derrotas e com os fracassos. Temos que contar, valorizar e reconhecer o nosso curriculum mortis, e não somente o curriculum vitae. Envelhecemos de dentro para fora. Quem dera que, vivendo muito, ficando velhos, estaríamos completos na intensidade do tanto que precisamos de afeto e de amor. Se crescem e têm mais publicidade a morte e o ódio, na barbárie em que nos encontramos, porque não podemos demonstrar amor, afeto e compaixão nas nossas relações cotidianas? Sempre há uma nova chance de fazer tudo de novo.

Aprendo que com a idade nova, de todo ano, existe a possibilidade de nos tornarmos mais humanos, mais simples e mais equilibrados. Precisamos nos alimentar da arte, da música e da literatura.

O trabalho social com algumas pessoas idosas da cidade me deu a geografia necessária para conhecer, e mais do que conhecer e conviver, me permitiu sentir as carências e as potencialidades da alma humana. Da minha própria latitude e longitude. A dimensão fugaz da existência, da vida. Ontem cumprimentei a senhora que adorava usar lenço na cabeça. Hoje, sei, choro e lamento a sua morte.

Nesse trabalho geriátrico-gerontológico, aprendi também que as máscaras que usamos caem. A vivência do envelhecimento – o meu próprio e o dos outros, desses e dessas que tanto acompanhei e acompanho – denuncia o mundo de faz de contas, o nosso mundo de fantasias, em que nos metemos para evitarmos sofrer. Posto que viver é muito dolorido e machuca a gente.

Ao ser encontrado por esse caminho profissional, tracei linhas nem sempre retas; mas, certamente, desenhei curvas sinuosas, na direção do que percebo que eu sou e principalmente daquilo que eu desejo ser. Talvez viver a velhice seja mesmo percorrer esse caminho traçado pela intuição do que vai na nossa alma. Minha tarefa é não sair da rota, não desviar do caminho. E sigo adiante, assim mesmo, quebrado, fraturado, faltando muitos pedaços que podem, um dia, me preencher; convicto e com a esperança de que alcançar mais idade me dá a possibilidade de reconhecer minhas necessidades que são eminentemente humanas, próprias de quem vive.

Por isso apresento o título da coluna de hoje. Pra dizer que o sentimento de orfandade não desaparece com a idade e nem passa com o tempo: o luto está junto e não acaba nunca. Como sinto falta do meu pai trabalhando suas emoções no formão da peça em madeira. Da minha mãe, que ao inicio da noite, fritava pedaço de frango no óleo bem quente para a janta. Diante da nossa caminhada para e no envelhecimento fica a possibilidade de durante esse percurso existencial, fazer e refazer nossas construções emocionais, afetivas e amorosas.

Lembrando que, como escreve Clarice Lispector, “uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente”. Falar mais o quê, caríssimos leitores e leitoras? Vamos viver!

Jose Anisio Pitico

Jose Anisio Pitico

Assistente social e gerontólogo. De Porciúncula (RJ) para o mundo. Gosta de ler, escrever e conversar com as pessoas. Tem no trabalho social com as pessoas idosas o seu lugar. Também é colaborador da Rádio CBN Juiz de Fora com a coluna Melhor Idade. Contato: (32) 98828-6941

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