Caixa de Sapato

Por Jose Anisio Pitico

Não me lembro de, quando criança, ter mania de guardar as coisas, colecionar objetos. Passava o meu maior tempo de vida na rua. Jogando bola. Descalço. Brincando de pique. Pique-bandeira. Garrafão. Bolinha de gude (búlica). Gostava de soltar papagaio. Custei a entender que aqui, estrela, era papagaio. Em Porciúncula, a gente conhecia como estrela. Eu adorava! Ficava mesmo era na rua, que foi a minha área de socialização e contato com o mundo. Pelo futebol aprendia a vida. E aprendia a viver. Fazia as amizades. E os colegas que eu gostava de jogar bola juntos, eram os que eu tinha mais afinidade fora das peladas. No par ou ímpar, para iniciar a formação dos times, eu ficava muito feliz quando jogava do mesmo lado de quem eu tinha afinidade.

Não só com os pés. Mas com o coração. Hoje as firmes amizades que tenho e que alimento foram gestadas nos campos de peladas de onde morei. No bairro Fábrica, por exemplo. Na rua General Gomes Carneiro. E no campinho ao lado da minha casa, nesse mesmo endereço. Fui crescendo. Gostava também de colecionar figurinhas em álbuns de futebol. Fora da memória em que o futebol está muito presente na minha vida, lembro-me que ganhei de presente da minha tia Nilva, um brinquedo altamente educativo, que não esqueço até hoje. Cérebro eletrônico. Ele trazia perguntas e respostas no tabuleiro. A luz acendia se a resposta estivesse certa. Muito interessante.

E como me marcou. Já na escola pública, apreciava a leitura da revista Placar. Não tinha grana para comprá-la, pegava emprestado com o colega para acompanhar o mundo da bola. Com a passagem do tempo em mim, crescia e ainda cresce, a vontade de eternizar os momentos que a vida nos proporciona. Na adolescência, em direção ao ingresso na faculdade, criei um expediente afetivo, materializado em caixa de sapato, onde guardava as cartas, ou melhor, os aerogramas que recebia da estudante (paquera), fruto de um relacionamento que se iniciou fora da cidade. As fotografias em papel encorpavam esse arquivo improvisado e dava alma e calor para essa e outras paixões juvenis. Paixões, não somente no campo do afeto amoroso com alguém, mas também no cuidado com alguns escritos – poemas, poesias, pequenos textos, mensagens que produzia sobre a vida, numa espécie bem pessoal de ter um diário de anotações sentimentais. A caixa de sapato, naquele momento, tinha o tamanho exato para guardar o nascimento da minha alma para um outro mundo que viria a construir. Eu tinha muita dificuldade para desfazer de uma caixa de sapato.

Tinha, não. Acho que ainda tenho. Se eu pensar um pouco mais, acho que fico com ela, mesmo que eu a deixe em algum canto da casa. Encostada. Fico pensando que ela serve para alguma coisa. Pode guardar segredos, conquistas, decepções, amores, novas possibilidades. Até bem pouco tempo atrás, eu tinha mania de comprar algumas mesmas coisas. Lápis e lâmpadas (dei uma parada). Não sei até hoje o motivo. Posso dizer que gosto de lápis para escrever e principalmente fazer pontas. Para mim, são poucos, os momentos relaxantes da vida, do que apontar um lápis. Principalmente usando estilete de papelaria. Quanto à mania de comprar lâmpadas, sendo que em casa já tem em estoque, pode ser porque busco a luz. Desejo sair da escuridão. Essa luz que encontro no trabalho social com as Pessoas Idosas da cidade. Busco conviver com pessoas que possam me trazer indicações de bons caminhos.

O dramaturgo, poeta e jornalista uruguaio Maurício Rosencof, em entrevista concedida à Folha de São Paulo, na edição do dia 31.01.21, nos ilumina com a seguinte frase, “é preciso ter algo que te lembre quem você é!”. Por isso, eu penso que ter memória em tudo que a gente faz é muito importante. É uma forma política muito forte de resistir a esses tempos líquidos como escreve o consagrado e pouco lido sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman na sua “Modernidade Líquida”. “Caixas de Sapatos” é o nome do próximo livro do jornalista uruguaio Maurício Rosencof em construção. Foi daí que tive o impulso para escrever esse texto de hoje. E foi lembrando o que eu colocava na caixa de sapato que eu fiz essa pequena revisão de memória dos tempos idos. Hoje o que eu desejo colecionar é o afeto e o amor das relações pessoais, de preferência, fora da caixa de sapato.

Jose Anisio Pitico

Jose Anisio Pitico

Assistente social e gerontólogo. De Porciúncula (RJ) para o mundo. Gosta de ler, escrever e conversar com as pessoas. Tem no trabalho social com as pessoas idosas o seu lugar. Também é colaborador da Rádio CBN Juiz de Fora com a coluna Melhor Idade. Contato: (32) 98828-6941

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