Agulha no palheiro

Por Marcos Araújo

“A tua piscina está cheia de ratos”, me disse Cazuza quando liguei o rádio. Foi assim que meu dia começou quando escrevi este texto. Não houve um bom dia de ninguém, muito menos do Cazuza, que só me jogou na cara o que ele começou a dizer há 34 anos, mas que ainda cabe como luva na realidade que nos cerca. Certamente não era a primeira vez que ouvia “O tempo não para”, mas, naquele momento, esperando a água da chaleira subir para passar o café, aquele verso me pegou de maneira diferente.

E essa diferença talvez tenha sido provocada pela notícia que li antes de dormir, na noite anterior, informando que a liberação de recursos pelo Ministério da Educação para construção de escolas e creches está valendo um quilo de ouro. Cazuza sempre esteve certo! As piscinas estão cheias de ratos, e os ratos estão aí para provar que, por mais que se queira, não se consegue disfarçar a podridão. É o Brasil mostrando sua cara, como diz outra letra do cantor. Sempre essa cara mais feia, que a gente já não aguenta mais e dá vergonha de ser brasileiro.

No rádio, a música acabou. Meu café ficou pronto, mas, na minha cabeça, os seus versos continuaram a gritar. “Dias sim, dias não/Eu vou sobrevivendo sem um arranhão” continua valendo, porque até hoje a vida do brasileiro tem sido pautada pelo verbo sobreviver. “Sem um arranhão” talvez seja a maneira encontrada de seguir em frente sem deixar-se abater a cada novo escândalo ou novo desmando daqueles que são os donos das piscinas.

Certa vez, em uma roda de conversa, ouvi alguém dizer que o país tem a mania de cultuar heróis errados. A pessoa que dizia isso se referia ao Cazuza, justificando que ele não era exemplo para ninguém, pois tinha uma vida desregrada, tanto que tinha morrido depois de ter sido infectado pelo HIV. Mas Cazuza não era herói, nem tinha pretensão de ser, era só mais um brasileiro, um artista sonhador que, por meio de sua música, expressava sua insatisfação com as falsas aparências, com as contradições com as quais temos sido obrigados a conviver. Nas suas canções e no seu modo de ser, ele expunha preconceitos que são os mesmos que ainda emperram a sociedade, mesmo depois de terem passado mais de três décadas.

Este texto não é para defender Cazuza, porque até eu ligar o rádio não existia a pretensão dele acontecer, nem Cazuza precisa de defesa. A letra de “O tempo não para” só serviu aqui de motivação para, mais uma vez, pensar nosso Brasil e, mais uma vez, arregaçar as mangas, para, como se diz, “correr atrás do prejuízo”, pois não é assim que fazemos todas as manhãs depois do café? Basta saber até quando teremos que correr para acabar ou diminuir o prejuízo. Mas, enquanto essa resposta não chega, é melhor a gente correr atrás mesmo, porque ainda estamos em busca de algo que não consigamos achar, como “uma agulha num palheiro”.

Marcos Araújo

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