Os moradores de Tubiacanga somos nós

Por Marcos Araújo

Completamos cem anos de encantamento de Lima Barreto neste mês de novembro. Muitas homenagens têm sido realizadas para destacar a importância desse escritor, que está mais atual do que nunca e que tem nos ajudado a compreender e a pensar o Brasil. Queria destacar o conto “Nova Califórnia”, que foi o último texto que li desse autor, que morreu tão prematuramente aos 41 anos, mas que deixou uma obra tão expressiva para um país que ainda se vê em conflito em razão da perversa herança deixada pela escravidão. Neste domingo, Dia da Consciência Negra, não há nada mais pertinente do que trazer para este espaço o nome de Lima Barreto. Ele foi um brasileiro negro que viveu no pós-abolição e, como intelectual de sua época, criou uma ampla e diversificada obra que se configura como um valioso testemunho daquele período. Sua escrita, sob o ponto de vista de quem morou na periferia, convivia com as camadas mais populares e foi olhado com desdém pela elite, colabora para o entendimento do cenário que nosso país tem hoje.

Raimundo Flamel, um químico, é o personagem que dá o ponto de partida para os acontecimentos narrados em “Nova Califórnia”. Esse é um texto que nos faz pensar na atualidade, principalmente, quando a mídia abre espaço para narrar que o “mercado” – que podemos ler como representante das pessoas mais ricas – fica “nervoso” diante do anúncio de que é preciso priorizar ações para acabar com a fome dos mais pobres. Quanto mais se tem, menos se quer dividir. Isso é a ganância, um dos temas abordados pelo conto que foi escrito por Barreto em 1910 e publicado cinco anos depois.

O texto faz uma paródia do enredo dos antigos relatos acerca da “corrida do ouro”, nos Estados Unidos no fim do século XIX, e o nome Nova Califórnia vem desse contexto, a fim de tocar o dedo na ferida dos brasileiros e de todo o ser humano de modo geral. A história se passa em um lugarejo chamado Tubiacanga, o qual recebe um morador estranho que intriga a todos. Porém, após algum tempo, o forasteiro, Raimundo Flamel, passa a ser querido por sua generosidade. Mas é devido a uma descoberta sua, o poder de transformar ossos humanos em ouro, que o químico chega ao coração das pessoas mais ilustres da pequena cidade. Flamel desaparece misteriosamente, mas deixa, com um dos locais, a receita de fazer ouro.

Após alguns dias, o cemitério começa a ser assaltado e as sepulturas profanadas. Aos poucos, descobre-se que os habitantes de Tubiacanga estão todos, com exceção do bêbado Belmiro, furtando as covas em busca de matéria-prima para a produção de ouro. Uma criança, inclusive, sugere ao pai que o próprio túmulo da mãe seja profanado, uma vez que ela, que era gorda, teria mais material para a fabricação de riqueza.

Levados pela ganância, os moradores entram em guerra e, no final das contas, o cemitério ganhou mais mortos do que havia recebido ao longo de trinta anos. Assim, o conto nos chama atenção para a selvageria do capitalismo, que, sem piedade, emprega qualquer esforço em busca de mais riqueza mesmo que tenha que passar por cima de valores, como família, tradição, respeito aos antepassados e imagem pública. Se, “na natureza, nada se cria e tudo se transforma”, assim como os ossos humanos são convertidos em ouro, os seres humanos, por mais morais e respeitáveis que sejam, transformam-se em seres regidos pela ganância.

O horror da profanação dos túmulos não é nada diante da chance do enriquecimento. Essa pode ser uma leitura do Brasil passivo diante da corrupção e abraçado pelo falso moralismo dos dias de hoje. Essas minhas considerações são uma irrisória leitura diante das possibilidades de reflexões geradas pelo conto e da grandiosidade da obra de Lima Barreto. Por meio da leitura que fazemos dele, o autor segue vivo e merecedor de nossa reverência.

Marcos Araújo

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