Obsoletos e descartáveis

Por Marcos Araújo

Ao mexer em uma gaveta de guardados que ninguém usa mais, minha filha encontrou um gravador de voz, daqueles antigos, que funcionava com uso de pilha e de fita cassete da marca Panasonic. Ela nasceu em 2011, época em que o celular já dominava as funções de gravar som e imagem. Para a menina, aquele aparelho descoberto que servia, unicamente, para a gravação de áudios era estranho, mas também curioso, e logo quis saber como funcionava e qual era sua utilidade. Também ficou encantada com a abertura onde a fita deve ser depositada e com aquelas duas peças no interior do compartimento responsáveis por adiantar ou por retroceder a gravação.

Aquele pequeno gravador que tanto despertou o interesse dela foi presente que minha mãe me deu depois que entrei na faculdade de Jornalismo. Ao longo do curso e dos primeiros anos de trabalho, aquele pequeno aparelho, que hoje é maior do que um celular, foi um companheiro de muitas coletivas de imprensa. Com a chegada de celulares cada vez mais avançados, com múltiplas funções e fáceis de carregar no bolso da calça, o Panasonic foi perdendo seu lugar de uso e encontrou outra função no fundo da gaveta: o de memória afetiva de uma época vivida com intensidade e alegria, quando descobria os primeiros passos da minha profissão.

Mexer nessas lembranças me fez pensar na atualidade e na nossa relação com os objetos. Desejar alguma coisa era bom. A gente passava um tempo cultivando o desejo. Quando criança, esperávamos o ano inteiro pelo Natal para ganhar um presente muito quisto. O longo período de espera servia para maturar o desejo. Mas, hoje, os objetos quase não carregam mais esse tipo de valor, e nosso desejo é constantemente atropelado pelo modismo e pelas novas versões.

Existia uma alegria de ter a posse de algo tão longamente pretendido e, certamente, era isso que nos dava a satisfação de propriedade e que nos permitia estabelecer algum tipo de relação com o objeto, surgindo vínculos de memória e de sentimentos. Mas, agora, o que está em voga é a arte do desapego. Essa concepção de vida vem sendo mal-interpretada. Para muitos, desapegar é jogar no lixo aquilo que já não serve mais e que pode ser facilmente substituído. Ideia que só faz bem ao consumismo e coloca, a cada ano, nosso planeta em risco.

Talvez o desapego seja algo além dessa concepção material e esteja mais ligado a uma postura de encarar a vida com mais leveza, com menos desejos fabricados e frustrações. Também não estou defendendo aqui uma noção de acumulação. Só quero chamar a atenção para as relações que estabelecemos com as coisas. Em um mundo com tanta coisa substituível, é preciso tomar cuidado para que não tornemos obsoletos os outros e descartáveis nós mesmos.

Marcos Araújo

Marcos Araújo

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