O samba no pé e na veia da Rainha Gracyele
Da ala das crianças à das passistas, a manicure nascida e criada no Bonfim tornou-se rainha no carnaval de Juiz de Fora
Ela sambava, ele apitava e, de soslaio, faziam-se filha e pai. No silêncio era distância. “Quando ia nos ensaios da Acadêmicos do Manoel Honório reparava num homem que ficava me olhando. Perguntava: ‘meu Deus, porque ele olha tanto?'”, recorda-se Gracyele Rocha. “Uma semana antes de ele morrer, conseguiu meu telefone e me mandou uma mensagem bonita, dizendo que Deus me protegesse. Respondi perguntando quem era. Ele ficou sem jeito de se aproximar de mim e disse que foi engano.” Pela foto no Whatsapp estava claro: era Mestre Catito, regente da bateria da agremiação do Manoel Honório, morto em 2016. “Fiquei com aquela dúvida na cabeça. Já tinha uma desconfiança, porque ouvia boatos de que ele era meu pai. Mas minha mãe não falava nada. No dia em que ele morreu, uma irmã dele, minha tia, me ligou contando que ele era meu pai. Minha mãe nunca me apresentou meu pai. Sempre que perguntava, ela ficava nervosa. Chegávamos até a brigar. Ela não gostava de comentar”, lembra.
“Ele tinha pedido, antes de morrer, que as irmãs me procurassem para dizer que ele era meu pai. Quis se aproximar, mas não conseguiu. Acho que a vontade dele era me abraçar, mas nunca teve coragem.” Gracyele também não. Tocaram-se, contudo, quando escolheram a mesma paixão. “O quanto eu gosto de carnaval está na veia”, afirma a mulher, negra e alta, num salto de muitos centímetros e com uma coroa de muitos brilhos. “Hoje sou rainha de bateria da Mocidade do Progresso e do Bloco dos Carteiros”, orgulha-se a primeira Rainha do carnaval de Juiz de Fora a permanecer no posto por dois anos seguidos. Eleita em 2017, permaneceu na corte da folia em 2018 após o cancelamento do concurso. “Somos convidados (ela, o rei Momo e a princesa) tanto para espaços fechados, como escolas e abrigos de idosos, como para ambientes abertos e blocos de rua. Na semana que vem vamos doar sangue. Não perdemos nada. A ideia é levar brilho e alegria. Durante o carnaval fechamos um contrato com a Funalfa, que fica com a nossa agenda. Fora dessa época, cobramos à parte. Faço shows, casamentos e formaturas. Hoje em dia é moda contratar uma bateria e uma mulata para as festas. Já fiz eventos com o Ladeira, com a Mocidade (do Progresso) e com o Partido (Alto)”, explica.
No alto do salto
Elas sambavam, Gracyele, a mãe e as irmãs. “Sempre desfilei, desde criança, nas alas infantis. Na minha adolescência me interessei pela ala de passistas. A primeira escola em que desfilei como passista foi a Partido Alto. Depois vim para a Mocidade do Progresso, Real Grandeza e fui pegando o gosto. Em 2009 resolvi concorrer como Rainha do Carnaval. Não consegui e voltei em 2016. Ganhei como princesa e em 2017 venci para rainha”, conta a mulher de 29 anos, nascida e criada numa mesma rua do Bairro Bonfim, junto dos três irmãos. “Minha mãe (Maria Aparecida) me levava, minha avó, meu tio. Ele (Vanderlei) tocava na bateria do Ladeira. Às vezes falava que ia me levar nos ensaios, mas, na última hora, sumia, e eu ficava chorando”, recorda-se, aos risos, trazendo à memória outros carnavais. “Na Rio Branco vi os melhores desfiles. Minha mãe levava a gente, bolsa com lanche e ficávamos nas arquibancadas. Tinha pouca confusão, e a violência era menor. Espero que os próximos desfiles sejam tranquilos também. No Parque de Exposições foi bastante organizado, com um ambiente muito bom”, comenta ela, a 400 metros da quadra da Mocidade Independente do Progresso, no Marumbi. “Sempre fomos aos ensaios na quadra, que faz parte da comunidade. E também descia para as escolas lá embaixo. Como os ensaios da Mocidade (do Progresso) acabavam cedo, pegava minha irmã mais nova e descia, a pé e de salto, o morro todo. Fazíamos uma jornada, passando pela Real Grandeza, depois Turunas do Riachuelo, Partido Alto e, por último, Ladeira.”
No brilho das unhas
Ela sambava até amanhecer e seguia para o trabalho. “Desde os 11 anos eu trabalho. Saía com minha irmã mais velha para limpar prédios. Sempre tive muita garra. Meu primeiro emprego, quando eu tinha 14, foi essa irmã quem conseguiu, em casa de família, no Paineiras. Arrumava a casa e tomava conta de um menininho. Fiquei três anos e fui para outra casa de família e fiquei mais sete anos. Foi então que resolvi tocar minha carreira de manicure. Sempre gostei, mas precisava sair do serviço mais cedo para dar conta das unhas. Faço unhas decoradas, com pedrarias. Quando vi que a demanda de clientes era grande, decidi trabalhar por conta. Está dando supercerto. Sou eu mesma quem faço meus horários. Quando chega carnaval, as clientes já sabem que preciso mudar a agenda de todas”, pontua ela, que muito cedo abandonou as carteiras da Escola Estadual Padre Frederico Vienken, a sete minutos de sua casa. “Parei na oitava. Depois engravidei e não voltei”, lamenta a mãe do pequeno Igor, de 6 anos, fruto de uma antiga relação de sete anos. Hoje, há três anos casada com Guilherme, barbeiro e articulador social que deixou sua Ilha do Governador natal para viver no Bonfim, guarda consigo o sonho de retomar os estudos, graduar-se em estética e construir a própria casa e o próprio salão, deixando para trás o aluguel que paga para morar e para manter o espaço de trabalho, numa garagem onde cabem suas dezenas de esmaltes. “Não tenho curso, sou curiosa. Vejo na internet e procuro entender. Faço com pincel, à mão. Desenho o que a cliente escolhe. No meu tablet tenho mais de 500 modelos de unha, criações minhas e outras que achei na internet”, explica a dona de unhas sem detalhes, num verde cintilante. “Manicure nunca tem tempo de fazer a própria unha.”
Nas cores da vida
Ela sambou para não sambar. “Quando decidi concorrer, sofri muito. Contratei um profissional para fazer minha fantasia, escolhi o modelo, paguei a metade do combinado (pagaria o restante na entrega). Era final de ano, eu estava trabalhando muito e, faltando alguns dias para o concurso, quando fui provar a fantasia vi que estava um lixo. Passei dias e noites sem dormir. Entrava em contato com as passistas do Rio de Janeiro, perguntando se tinham fantasias para alugar ou vender, até que encontrei uma pessoa que aceitou me vender”, recorda-se a mulher que conheceu o bastidor de competitividade da folia. “Se soubesse que existem tantas pessoas diminuindo as outras, não teria me envolvido. Em concurso, ninguém aceita perder”, garante a dona de dois piercings (um no freio superior e outro no nariz), vestida de lilás, com abdômen e coxas de fora. “Sou bastante periguete”, ri. “Minha roupa é do Ateliê Se Vira nos 30, como a gente costuma dizer. Quem faz as roupas é o meu amigo Wesley Diego, que desde o primeiro concurso esteve do meu lado, vibrando e costurando”, pontua, ao lado do fiel escudeiro, um dos muitos integrantes de uma grande torcida por Gracyele. “No concurso do ano passado foi minha família inteira, tive torcida, o pessoal fez camisa. Parecia Copa do Mundo. Ganhei o concurso no sábado e no domingo já levantei e fui para a Feira da Avenida Brasil. Só fui cair na real na terça-feira”, lembra ela, que malha todos os dias e, aos finais de semana, não consegue ficar parada. “Onde tem um sambinha eu estou. Gosto de pagode e funk também, mas o samba me arrepia toda.”