Edison Santos: da rua para o orfanato, o trabalho e a arte
O trabalho como metáfora da vida: Com restos de molduras, Edinho faz artesanatos, e com as dificuldades faz uma vida ética, humilde e solidária
Era um sábado quando ele reviveu a própria história. “Eu ia descendo a Avenida Itamar Franco, quando passei numa padaria, tinha duas crianças sentadas na porta, querendo lanchar. ‘Moço, você não tem um trocado para a gente comer alguma coisa?’. Eu perguntei o que elas queriam e fui comprar um salgado. Fiquei emocionado com a situação e lembrei da minha fase. As crianças pediam e as pessoas passavam. Na hora me deu vontade de chorar, mas eu segurei. Naquele sábado, fui andando e lembrando”, conta Edison Alexandre dos Reis Santos, que aos 41 anos confrontou-se com a criança de um passado que sempre permaneceu presente. “Quando vejo alguém na rua, dormindo na calçada, pedindo, fico muito tocado”, diz ele, artista cujo trabalho representa a própria vida ao ressignificar peças que seriam descartadas no cotidiano da molduraria onde trabalha. Com os pequenos triângulos, Edinho Negresco – “Escolhi assinar assim pelo orgulho da cor e porque é um nome artístico bom” – recompõe barcos, seres e formas abstratas. Recria imagens e a própria narrativa.
‘A gente cuidou dela’
Quando encontrou as duas crianças na porta de uma padaria a pedir-lhe um lanche, Edinho lembrou da vida nos primeiros anos. “Vivia com a minha mãe, mas não tínhamos condições de vida. Lembro que eu andava na rua, pedia dinheiro nas casas, dormia debaixo da marquise com a minha mãe e meu irmão. Eu devia ter uns 3 ou 4 anos. Minha tia vendo isso, resolveu colocar a gente num orfanato. Ela que ficou responsável por nós, já que a minha mãe não tinha noção de nada. No começo eu ficava no Instituto Jesus todos os dias e só via a família no meio e no final do ano, ou quando ela ia visitar a gente”, recorda-se ele, que sempre andou acompanhado pelo irmão um ano mais novo, com quem se mudou para a instituição. Segundo filho, teve oito irmãos. “Minha mãe tinha onde ficar, mas não lembro bem. Sei que vivemos um tempo pequeno no Bairro Santa Rita, com essa tia. Lembro que tive aniversário e, como eu e meu primo éramos do mesmo mês, fizeram um bolo de aniversário de futebol para nós. Na época eu falava que era botafoguense, mas hoje sou Flamengo”, ri. Sobre o pai, pouco sabe. “Não conheci. Dizia a minha mãe que ele estava vivo. Ela tentou entrar em contato com ele e disse que ele cortava cabelo. Mas ele conversou com ela e disse que já tinha família, não se esforçou. Não fiz questão de procurar, então”, afirma o homem que no último mês despediu-se do irmão e, há dois meses, da mãe. “Mesmo ela não cuidando da gente, no final da vida a gente viveu com ela, cuidou dela quando ela ficou adoecida.”
‘O instituto foi um quartel’
Quando lembrou-se da infância, Edinho também reviveu a adolescência e a juventude, todas as fases impregnadas de uma forçada maturidade. Vivendo, integralmente no Instituto Jesus até os 10 anos, o menino passou, na segunda década de vida, a ir para a casa da tia, no Jóquei Clube II, aos finais de semana. “Fiquei no instituto até os 16. Quando fiz 12, fui para a marcenaria que tinha lá. No meu primeiro ano, eu já estava bem craque e pude sair para trabalhar fora. Meu primeiro emprego foi no ramo de molduras. Eu era muito moleque, gastava o dinheiro jogando fliperama, e acabei ficando só três meses no trabalho. No instituto tinha tempo para brincar e atividades para fazer. Uns arrumavam o dormitório, outros ajudavam na cozinha, outros varriam o pátio. Eu ajudava muito na cozinha, servindo a mesa e o que mais precisasse. Na época, eu não me sentia muito triste, porque era um alívio. Passei da rua para lá: eu tinha teto e estava comendo. Não fiquei revoltado por estar ali. Tinha um lado ruim, de apanhar por fazer arte, mas teve um lado bom que me ajudou a ser quem sou hoje”, conta ele, que fazia reforço na instituição e, em escolas públicas próximas, completou o ensino médio. Aos 16 passou a morar com o irmão, a tia e seus dois filhos. “Depois que saí do instituto, trabalhei como servente de pedreiro, pintor, até passar a fase do exército. Não quis servir, porque, para mim, o instituto foi um quartel. Como eu já estava centrado, queria era trabalhar e conquistar minhas coisas. Assim que fiz 18 anos e fui liberado do serviço militar, então, fui procurar emprego. Minha tia mandava sair para distribuir currículo já com a marmita arrumada na bolsa.”
‘É preciso correr atrás’
Quando pensa nos desafios que lhe foram impostos e na força e na coragem que utilizou para enfrentá-los, Edinho sorri. O presente parece um presente. Os amigos? “Muitos pararam no meio do caminho”, lamenta ele, que há dez anos é casado e mora com a esposa no Bairro Bandeirantes. “De 15 em 15 dias, a gente pega nossa afilhada, que está com 4 anos e é filha de uma sobrinha dela”, conta ele. Com a mulher, que trabalha como doméstica, conseguiu comprar um apartamento no Previdenciários, que colocaram para alugar. “Para ter as coisas, é preciso correr atrás, batalhar. Todo esforço é recompensado”, defende, dizendo sentir muito prazer no trabalho na molduraria. “Trabalho no ramo há mais de 20 anos. No início, era numa loja com muita pressão, não tinha tranquilidade, por isso não tive um despertar. Há 15 anos, vim trabalhar nessa loja que estou até hoje e fui percebendo que poderia fazer esses artesanatos com os restos de molduras. Eu fazia só para enfeitar minha casa, e mostrava para os meus amigos, que falavam que eu tinha que levar para a rua”, recorda ele. “Meus trabalhos estão muito ligados a geometria, que era uma matéria que eu gostava muito na escola”, diz. “Um conhecido meu me chamou para vender na feira de domingo da Avenida Brasil. Não conseguia vender nada, porque os trabalhos ficavam no chão. Tinha que arrumar um espaço melhor, para valorizar.” Foi então que passou pela Praça Jarbas de Lery, em São Mateus, e avistou uma feira de artesanatos que acontece aos sábados. Um dia parou e pediu uma barraca. Passadas duas semanas, instalou-se. E passaram-se dez anos. “Hoje monto e desmonto a feira. Chego 5h da manhã e começo a montar a feira por volta das 6h.”
‘Tenho muito para batalhar’
Quando alegra-se, Edinho se enche de fôlego para os sonhos. É cheio deles. “Tenho muito para batalhar, tenho muitas ideias. Penso em, futuramente, ter um balcão para mim, para mostrar minha arte para a molecada. Um ateliê seria ótimo, porque lá em casa não tem espaço para separar as peças e fazer os quadros. Tem muita sobra das molduras. Uso só as da loja onde trabalho. Se eu rodasse as lojas todas da cidade, teria muito mais coisas para fazer. Tenho ideia de fazer quadros grandes. Fiz um de 1,5m x 1m, que está na loja dos artesãos da feira. Tenho ideias, mas me falta espaço”, pontua ele, apaixonado, também, por outra arte. “Antes de partir para o artesanato, tentei tocar como músico nos bares da cidade. Mas era difícil trabalhar de dia e tocar à noite. Comecei a desfocar. Para fazer um som maneiro, é preciso ensaiar, relaxar, não dava para fazer cansado. Acabei desistindo. Mas ainda quero fazer um CD meu, com as músicas que já escrevi”, conta ele, com a voz calma e certa timidez, mas muita segurança. “Sempre fui um cara pacífico, tranquilo, sempre apaziguei.”