O jeito na cultura (jurídica) brasileira
Quem nunca falou ou ouviu falar do jeitinho brasileiro? Embora não seja novidade, tenho para mim que o tema é negligenciado. Nossa história e tradição são reveladoras de uma país e sua gente que aprendeu a ser muito tolerante com os “jeitos” que em sua maioria favorecem as pessoas que já estão em posições privilegiadas, sempre movidas pela consagrada cordialidade de Sergio Buarque de Holanda, escancarada no personalismo e no patrimonialismo.
Como sugeria Buarque de Holanda, historicamente a cultura brasileira não fomentou a clara divisão entre o público e o privado, a criação de um corpo não patrimonial ou uma burocracia imparcial e neutra movida por normas e não por relações pessoais. O retrato da nossa trajetória – do passado e do presente – é manchado pelo predomínio das vontades particulares cultivadas em círculos fechados e inacessíveis a uma ordenação impessoal, cuja a consequência é a baixa politização ou uma politização artificial.
Com mais tempero, Roberto DaMatta é outra referência no debate sobre as esferas públicas e privadas de poder e nos diz que no Brasil temos uma sociedade dual com duas formas de arquitetar o mundo: de um lado “indivíduos” sujeitos à lei e do outro “pessoas”, para as quais as normas seriam apenas formulações destituídas de sentido, em poucas palavras, “para os amigos tudo, para os inimigos a lei”.
No Brasil, por exemplo, quando supomos não haver mais situações capazes de nos chocar, eis que surgem novos capítulos sobre os presentes recebidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, com direito a General quatro estrelas e tudo. O enredo é surpreendente e só confirma a velha percepção de que no Brasil as coisas só são previsíveis quando já aconteceram.
Sem embargo dos pequenos detalhes, o caso é uma tradução fiel do que se entende por “jeitinho brasileiro”: um modo de resolver problemas ou tirar proveito burlando o sistema jurídico, quase como se o ilícito fosse regulado por lei, quase um poder jurídico paralelo.
Keith S. Rosenn, autor do ácido livro “O jeito na cultura jurídica brasileira” (1998), parece ter escrito a obra neste ano.
Segundo Rosenn, é um hábito sistêmico nacional compreender que há atos ilegais que merecem menor atenção por serem “menos ofensivos” já que ninguém, no caso, estaria aferindo lucro às custas do Estado. Tudo isso, segundo o autor, são heranças da presença portuguesa em nosso solo ainda em cultivo que acabara por dar vida aos desvios administrativos e burocratas, à ineficácia das leis, à corrupção dos funcionários públicos e à falta de responsabilidade cívica.
Ao contrário do que se imagina, no nosso Estado legalista, formalista e paternalista, o poder acaba por ecoar os interesses das elites, que usam do verniz da democracia representativa para aparentar vontade popular, enquanto que na prática reproduzem leis simbólicas regulando situações da vida pública e privada, materializando um sistema legal confuso e ininteligível.
O estado de coisas em nosso país é de descaso com a res publica. O jeito na cultura jurídica brasileira é um alerta ao povo na direção da autocrítica. Não basta censurar apenas políticos e governantes se na rotina da vida é comum vermos pessoas utilizando do “jeito” nas situações mais corriqueiras e que hipocritamente exigem mudanças drásticas nas diretrizes do Estado.