A origem dos problemas
Enquanto escrevo este texto, o cenário jurídico-político brasileiro passa por mais uma sacudida. Para quem anda por fora, no dia 22 de novembro, por 52 votos a 18, o Plenário do Senado Federal aprovou, em dois turnos, a PEC 8/2021, que limita decisões monocráticas de ministros do Supremo Tribunal Federal.
Esse fato gerou reações acaloradas. De um lado, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, defendeu a soberania do Legislativo, dizendo que as decisões individuais de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) não podem sobrepor-se ao Congresso Nacional e ao presidente da República. Afirmou ainda que a aprovação não constitui nenhum tipo de enfrentamento ou retaliação contra o STF. Por seu turno, os ministros do STF não aceitaram bem. Gilmar Mendes foi duro: “Os autores desta empreitada começaram-na travestidos de estadistas presuntivos e a encerraram melancolicamente como inequívocos pigmeus morais”.
A PEC foi aprovada, seguiu para a Câmara e o futuro a Deus pertence (a não ser que uma decisão monocrática diga o contrário e casse os poderes do Criador). Brincadeiras à parte, o assunto merece uma análise cuidadosa. Até onde vai a atuação do Poder Legislativo (por intermédio de projetos de lei e de emenda à Constituição etc) e qual é o campo de atuação do Poder Judiciário mediante a edição de seu regimento interno? Especificamente sobre a PEC, podemos assim resumir a questão: está na competência do legislador interferir nos procedimentos do STF ou a Constituição reservou ao próprio STF, mediante norma regimental interna, definir suas regras quanto às decisões monocráticas?
O falecido ministro Paulo Brossard, em um de seus votos proferidos no STF (ADI 1.105‐MC/DF), assim se manifestou sobre o tema: “Em verdade, não se trata de saber se a lei prevalece sobre o regimento ou o regimento sobre a lei. Dependendo da matéria regulada, a prevalência será do regimento ou da lei (…). O certo é que cada Poder tem a posse privativa de determinadas áreas.” A frase mostra a dificuldade de se estabelecer o que é matéria do Legislativo ou do Regimento interno do Tribunal. E pior: na dúvida, quem poderá dizer se a lei avançou sobre as prerrogativas do Judiciário… é o próprio Judiciário. E então andamos em círculo.
Há que se ter cautela em tudo o que envolve divisão de poderes, pois estamos diante do que há de mais fundamental na estrutura de um Estado Democrático de Direito. Por isso, não se pode esquecer que os regimentos internos são um dos elementos mais importantes da independência do Poder Judiciário, “porque, se assim não acontecesse, poderiam os legisladores, com a aparência de reorganizar a justiça, alterar a ordem dos julgamentos e atingir a vida interna dos tribunais” (Pontes de Miranda).
Dito isso, não se deve, por consequência, achar que toda e qualquer iniciativa que tenha como consequência alterar a rotina do Supremo Tribunal Federal seja, necessariamente, uma usurpação de poderes, um risco institucional grave, dentre outras hipérboles que servem apenas para tumultuar o debate. O teor da PEC 8/2021 é bastante razoável e, a meu ver, perfeitamente cabível na esfera de atuação do Legislativo. A gritaria do STF não se justifica – e pode, inclusive, piorar a percepção popular sobre nossa mais alta Corte, que já não anda tão boa.
Chegamos, assim, à origem do problema: não estivesse o STF com a credibilidade tão abalada, nada disso seria necessário: PEC, bate-bocas, pigmeus morais. Eis, então, uma fórmula que se pode rascunhar: quanto mais contido o ímpeto do Judiciário, mais contido será o ímpeto do Legislativo – e vice-versa. Que fique de lição para todos os envolvidos.
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