A justiça no dia da ira
Localizada 50 quilômetros ao norte de Praga, Terezin foi transformada em um campo de concentração pelos nazistas após a ocupação da Tchecoslováquia. O campo era incomum, pois os presos incluíam estudiosos e cientistas judeus altamente qualificados, bem como artistas e músicos de renome internacional. Após exaustivas horas de trabalho forçado, os prisioneiros desnutridos se reuniam para discutir filosofia e religião, escrever poesia, cantar e tocar música.
Em 1943, o compositor Rafael Schächter recrutou 150 cantores que se reuniram por meses em um porão mal iluminado para aprender o Requiem de Verdi. Usando uma única partitura vocal, ele ensinou a difícil obra por meio de memorização e repetição, acompanhado apenas por um piano. Substituições no coro foram necessárias pelo menos três vezes, pois os prisioneiros eram enviados para o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau.
Após a deportação dos judeus dinamarqueses para Terezin, o rei Cristiano X da Dinamarca exigiu informações sobre como os deportados dinamarqueses eram tratados. Vendo a oportunidade de espalhar desinformação, os nazistas decidiram permitir uma visita da Cruz Vermelha. Mais de sete mil pessoas foram deportadas imediatamente para Auschwitz-Birkenau para diminuir a superlotação, jardins foram plantados, lojas e cafés falsos foram criados, tudo para dar a impressão de que os judeus tinham uma vida boa em Terezin.
A inspeção da Cruz Vermelha foi realizada em 23 de junho de 1944. O Requiem de Verdi foi cantado. Aquela apresentação, utilizada como propaganda pelos nazistas, tinha um significado completamente diferente para os membros do coro. Afinal, naquele momento eles podiam cantar a explosiva “Dies irae” (Dia da ira) para seus algozes: “Quantus tremor est futurus/Quando iudex est venturus” (Quanto tremor haverá/Quando o juiz vier). O sobrevivente de Terezin, Edgar Krasa, explica: “Cantamos para os nazistas o que não podíamos dizer a eles”.
Essa triste história nos leva aos limites das discussões sobre a justiça. Se tudo acaba aqui, se não há um “dia da ira” a nos aguardar, as injustiças deste mundo irão prevalecer? O compositor Schächter foi deportado para Auschwitz-Birkenauem 16 de outubro de 1944, não tendo sobrevivido ao Holocausto. Seus algozes, caso impunes neste mundo, merecem punição da justiça divina? Ou nada disso existe e vale a lei do mais forte aqui e agora, como defendeu Trasímaco diante de Sócrates? E como compatibilizar um Deus julgador com sua misericórdia infinita?
Diante do “mal radical”, escreveu Hannah Arendt, “sabemos apenas que não podemos punir nem perdoar”, pois ele transcende o domínio dos assuntos humanos. Estamos despojados de todo poder. Impossível perdoar, pois isso significaria reconciliação com o irreconciliável. Impossível punir, pois é um mal que transcende nossa capacidade de reparação.
Os prisioneiros de Terezin cantavam sua esperança no dia da ira como a realização da justiça que lhes era negada, não como a vinda de um Deus irascível e excêntrico. Cantavam para que a justiça fosse feita como obra de misericórdia de um Deus que enxerga seu sofrimento quando ninguém mais o faz. E isso não está contra nossa finita razão humana, mas apenas acima dela, onde não podemos inteiramente compreender o mal e a injustiça.