O que a greve dos atores e roteiristas de Hollywood tem em comum com o caso Elis Regina?
Os atores e roteiristas de Hollywood estão em greve. Inúmeras demandas estão em negociação, como, por exemplo, aumento salarial, ganho residual por exibição em serviço de streaming, melhorias nos planos de saúde – e a limitação no uso da inteligência artificial.
O receio dos atores e roteiristas quanto ao uso da inteligência artificial é justificado. Hoje, modelos de linguagem avançados como o ChatGPT podem fornecer um roteiro para cinema, televisão ou teatro em questão de segundos; e tecnologias de escaneamento de imagem e voz podem tornar desnecessária a presença física de um ator no set de gravação. Nesse sentido, atores e roteiristas não estão somente buscando mais direitos ou melhores condições de trabalho – eles também estão lutando pela própria existência dos seus trabalhos.
Se você achou a última frase exagerada, pense no filme “Rogue One: uma história Star Wars”, de 2016. Nele, há uma cena em que a atriz Carrie Fisher (a Princesa Leia) foi recriada digitalmente, sem que ela tenha pisado um dia sequer no set ou estúdio para tanto.
Esse caso não é tão problemático porque a própria atriz consentiu com a recriação da sua imagem em forma digital (dizendo, inclusive, ter gostado da homenagem). Mas imagine uma situação em que a pessoa que terá a sua imagem recriada digitalmente não puder dar o consentimento por já ter morrido. Pense no caso Elis Regina.
Quando o comercial da Volkswagen que recriou digitalmente a imagem e a voz da cantora Elis Regina foi ao ar, no dia 4 de julho, as reações nas redes sociais foram imediatas – e extremas. Enquanto uns teciam elogios efusivos à peça publicitária, outros a criticavam pelos mais variados motivos. Entre eles, o questionamento ético quanto à prática de “ressuscitar” uma pessoa por meio da inteligência artificial.
E, como já era esperado, o questionamento ético deu ensejo a discussões no âmbito legal. Logo no dia 10 de julho, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) abriu um processo ético para avaliar a campanha. E, no dia 19 de julho, o senador Rodrigo Cunha (Podemos/AL) apresentou o Projeto de Lei 3.592, que visa estabelecer diretrizes para o uso de imagens e áudios de pessoas falecidas por meio da inteligência artificial, com o intuito de preservar a dignidade, a privacidade e os direitos dos indivíduos mesmo após a sua morte. O art. 2º do referido projeto dispõe que “o uso da imagem de uma pessoa falecida por meio de IA requer o consentimento prévio e expresso da pessoa em vida ou, na ausência deste, dos familiares mais próximos”.
A iniciativa, apesar de incipiente, é importante – e está, na minha opinião, no caminho correto. O consentimento prévio e expresso deve ser um requisito essencial para o uso da imagem de uma pessoa por meio de inteligência artificial. Mas, enquanto as legislações não são aprovadas, sobram incertezas e inseguranças. A saída, por enquanto, é fazer como a atriz Whoopi Goldberg e a cantora Madonna, que determinaram em testamento a proibição do uso das suas imagens por meio de hologramas e/ou inteligência artificial.