Uma dor, um café e a conta
Alguma coisa em mim deve ter começado a denunciar, desde cedo, que eu seria jornalista um dia. Não me lembro exatamente quando tomei a decisão de fato, mas sei que não foi algo que disse desde os cueiros, quando os adultos esperavam uma resposta engraçadinha para o “O que você vai ser quando crescer?”- a que já respondi com professora, bailarina, pianista e atriz, pelo que a memória me deixa resgatar. Não cresci muito ao longo da vida – a não ser pelo manequim e meus enormes sapatos 38 (pasmem!)-, mas quando chegou o momento da escolha, nos tempos do já quase finado Vestibular, fiz minha opção sem titubear, e a cada dia em que trabalho neste ofício, tenho a absoluta certeza de que não poderia obter meu sustento, financeiro e da alma, de outra maneira.
Durante a faculdade, aprendi a fazer todo tipo de texto jornalístico, a como me portar diante das câmeras (embora, até esta data, não tenha uma relação de amizade com elas), ensinamentos de ética e apuração, teorias e mais teorias de Comunicação, e claro, lições de vida destiladas nas cantinas que só o ambiente universitário é capaz de propocionar. O que a gente só aprende na lida, entre uma pauta e outra, com os telefones esgoelando à orelha, ou no translado de uma ocorrência para a outra, é que o jornalismo dói- constante, pungente e silenciosamente.
Com o tempo, homicídios, acidentes, desastres naturais e todo tipo de desgraças que não atingem nosso umbigo acabam se tornando uma estatística, uma pauta, um texto. “Fulano, teve um homicídio lá em não-sei-onde!”. E assim seguimos para o destino, como quando o caixa do Bahamas grita “Caixa livre!” e nos movemos à frente. Ao fim do dia, vira tudo um conjunto de letras impressas em papel, não raramente com nosso nome acima, anunciando o narrador de más notícias. Não desabar frente a cada uma destas pequenas e grandes tragédias humanas é a única forma de manter a sanidade, a profissão, e dizer às pessoas o que está acontecendo por aí. Ficamos mais duros, mais cinzas e talvez um tanto mais cegos para as mazelas, ao ponto de muitas vezes não nos surpreendermos com elas. É esta, sem qualquer dúvida, meus amigos, a grandessíssima dor do jornalismo.
Chico- sempre ele- Buarque já diria, com maestria, que “A dor da gente não sai no jornal”. Cada palavra dos textos desprovidos de emoção e prenhes de informações que escrevemos omite o tanto de sentimento que engolimos, desde as letras mal-traçadas no bloco às que são publicadas em fonte padronizada. Mandamos um gole de café por cima e é hora de continuar, porque se o mundo não para nem para que os protagonistas dos mais variados sofrimentos se recomponham, seria muita prepotência esperar que ele desacelerasse seu girar irrefreável para um afago na alma de quem relata o drama pelos bastidores, sem qualquer participação em cena.
Depois de muito tempo na seara da cultura, do comportamento, das artes e de tantas coisas que deixam a vida mais leve, presenciei, nesta semana, uma morte, em plena Avenida Rio Branco. Litros de sangue – e quisera eu que fosse metáfora- cobriam a calçada, o poste e a sarjeta, sob os olhares de curiosos que insistiam, como sempre, em permanecer por ali, mesmo com o cheiro de matadouro que tomava o ar. Não foi acidente, não foi homicídio, não foi nem matéria, já que se tratou de uma morte “morrida”, e a vítima teve resguardado seu direito de morrer no anonimato, ainda que diante de dezenas de pares de olhos. Pode ser porque meu escudo jornalístico careça de manutenção, pode ser uma TPM eterna, pode ser só este tempo chuvoso e cinzento que faz a gente teimar em ficar mais melancólico. Mas parte do meu coração ficou ali, banhado em sangue, na Rio Branco com a Oscar Vidal, inconsolável, entre duas ambulâncias do Samu.
Suspirei fundo, e agradeci por isso. Espero que as dores do mundo nunca deixem de ecoar por completo no meu peito duro e calejado de jornalista. Ainda que sejam lavadas, entre uma pontada e a próxima, por goles prolongados de café nem sempre doce.