O vascaĆno quer o Vasco
Em 1920 e 1921, em meio Ć polĆtica de Estado de branqueamento da populaĆ§Ć£o, a SeleĆ§Ć£o Brasileira foi a campo na Copa AmĆ©rica sem quaisquer atletas negros. Como bem atesta Eduardo Galeano, EpitĆ”cio Pessoa, presidente Ć Ć©poca, baixara um “decreto de brancura”. Para EpitĆ”cio, “por razƵes de prestĆgio pĆ”trio”, o Brasil nĆ£o poderia ser representado por quem realmente o constitui. A polĆtica racista estendia-se tambĆ©m Ć s ligas regionais. Ante o esporte oligĆ”rquico, o Vasco da Gama se insurgiu. Em 1924, recusou-se a disputar o campeonato local, entĆ£o organizado pela AssociaĆ§Ć£o Metropolitana de Esportes Athleticos, depois de ser exigido a excluir 12 atletas negros de seu escrete. Pois 95 anos depois, o clube volta a peitar investidas elitistas no esporte agora consagrado como mais popular.
Desde a segunda-feira passada (25), cruz-maltinos aderem ao quadro de sĆ³cios-torcedores do Vasco em razĆ£o do desconto de 50% concedido em alguns planos. Se tinha 32 mil associados, o clube de SĆ£o JanuĆ”rio soma 139 mil atĆ© esta terƧa-feira (3). Evidentemente, a adesĆ£o Ć© uma reaĆ§Ć£o de torcedores que reivindicam o direito Ć glĆ³ria como os rivais rubro-negros. Mas tampouco se resume a isso. Ainda que despretensiosamente, a promoĆ§Ć£o assegura aos vascaĆnos mais pobres a oportunidade de garantir ingressos, e, por consequĆŖncia, o acesso a SĆ£o JanuĆ”rio. Carro-chefe da elitizaĆ§Ć£o do futebol, o programa de sĆ³cio-torcedor Ć©, por natureza, excludente, pois limita a arquibancada a uns com condiƧƵes de abrir mĆ£o de valores que, para outros, custeiam contas de Ć”gua e luz. Combater a elitizaĆ§Ć£o, no Brasil, Ć©, sobretudo, confrontar o racismo.
Apesar de estimativas iniciais apontarem acrĆ©scimo de R$ 1,8 milhĆ£o nas receitas mensais, a preocupaĆ§Ć£o do Vasco deve ser garantir os preƧos promocionais para alĆ©m do perĆodo de seis meses. Em geral, os programas de sĆ³cios-torcedores sĆ£o estruturados pelas agremiaƧƵes apenas como receitas alternativas a patrocĆnios, por exemplo. Embora tais programas devessem cumprir a funĆ§Ć£o de democratizaĆ§Ć£o dos clubes, isto Ć©, garantir a pluralidade de torcedores nas arquibancadas, tais programas instrumentalizam o torcedor enquanto cliente. Em sua maioria, as “arenas” – outro sintoma do processo de elitizaĆ§Ć£o – sĆ£o invariavelmente brancas, pĆ”lidas. A medida do Vasco da Gama deveria ser um ponto de inflexĆ£o em meio Ć iminente aprovaĆ§Ć£o do projeto de clube-empresa, cujo objetivo Ć©, sobretudo, regulamentar a mercantilizaĆ§Ć£o da relaĆ§Ć£o entre clubes e torcedores.
Discutir o acesso aos estĆ”dios representa debater a democratizaĆ§Ć£o do futebol. Da “Resposta HistĆ³rica” aos descontos nos planos de sĆ³cio-torcedor, o Vasco compromete-se com as inclusƵes racial e social, ou seja, com a prĆ³pria histĆ³ria. Com a quinta maior torcida do paĆs, o clube ensina aos mais populares – Palmeiras, SĆ£o Paulo, Corinthians e Flamengo – como honrar o compromisso com os torcedores que os amam, e, nĆ£o apenas, os consomem. Por isso, nĆ£o hĆ” estĆ”dio mais simbĆ³lico do que SĆ£o JanuĆ”rio. O cruz-maltino, por fim, espera somente que a democratizaĆ§Ć£o estenda-se para as estruturas de poder da agremiaĆ§Ć£o, marcada, como quaisquer outras, por diretorias majoritariamente brancas.